O que leva alguém a amar a literatura? O que leva alguém, mais do que simplesmente ler literatura por amor, a se especializar querendo teorizá-la e ensiná-la? E que problemas isso pode gerar, inclusive colocando a literatura em perigo?
Para o ensaísta Tzvetan Todorov, autor do livro A literatura em perigo (Difel, 2009, 96 págs.), traduzido este ano para o português, a primeira pergunta é fácil de responder: "Porque ela me ajuda a viver. Em lugar de excluir as experiências vividas, ela me faz descobrir mundos que se colocam em continuidade com estas experiências e me permite melhor compreendê-las. Mais densa e mais eloquente que a vida cotidiana, mas não radicalmente diferente, a literatura amplia o nosso universo, incita-nos a imaginar outras maneiras de concebê-lo e organizá-lo. Ela nos proporciona sensações insubstituíveis que fazem o mundo real se tornar mais pleno de sentido e mais belo. Longe de ser um simples entretenimento, uma distração reservada às pessoas educadas, ela permite que cada um responda à sua vocação de ser humano".
Talvez esta seja a relação mais fecunda que alguém possa vir a ter com a literatura. Mas não é a única, já que cacarecos diversos vão se aderindo ao universo do prazer da leitura e sua consequente ampliação da sensibilidade humana. E esses cacarecos é que são o problema e o tema discutido pelo livro de Todorov.
Na orelha do livro, escrita pelo historiador da arte Jorge Coli, aparece o diagnóstico da problemática levantada por Todorov ao longo do seu texto. A partir dos anos 60, correntes teóricas literárias formalistas, estruturalistas e/ou sociólogo-marxistas fizeram com que o prazer da literatura fosse substituído pelo prazer da engenhosidade analítica. A teoria triunfou sobre o prazer. A literatura poderia existir (como na República de Platão), desde que submetida aos procedimentos cirúrgicos invasivos da racionalidade teórica que não só a compreenderiam, dissecando-a, mas controlariam seus efeitos sobre os leitores. Ulisses amarrado ao mastro para não sucumbir ao encanto perigoso do canto das Sereias.
A consequência mais imediata dessa tragédia é que nas escolas e universidades ensina-se e discute-se mais o que os críticos pensam das obras literárias do que o que as obras comunicam por si mesmas. Todorov levanta questões relativas aos rumos que o ensino de literatura tomou: devemos estudar, em primeiro lugar, os métodos de análise, ilustrados com as diversas obras, ou estudarmos obras consideradas como essenciais?
Nesse questionamento há uma crítica ao valor excessivo que a teoria tomou no mundo das letras e no mundo acadêmico: "Todos esses objetos de conhecimento são construções abstratas, conceitos forjados pela análise literária, a fim de abordar as obras; nenhuma diz respeito ao que falam as obras em si, seu sentido, o mundo que evocam".
A arrogância teórica é o alvo de Todorov. Por isso, ele vaticina: "Nós ― especialistas, críticos literários, professores ― não somos, na maior parte do tempo, mais do que anões sentados em ombros de gigantes". Pois, continua o ensaísta, "Rosseau, Stendhal e Proust permanecerão familiares aos leitores, muito tempo depois de terem sido esquecidos os nomes dos teóricos atuais ou suas construções conceituais". E, finalmente, conclui: "há mesmo evidências de falta de humildade no fato de ensinarmos nossas próprias teorias acerca da obra em vez de abordar a própria obra em si mesma".
Uma boa paulada na cabeça desses castrati que se arrogam o poder de conhecedores da arte quando na verdade mal fruíram o objeto, mal foram contaminados pela sua corrente sensual interna, sua riqueza irracional e abismal. Claro, psicanaliticamente falando, criamos uma cultura cartesiana-defensiva que teme a paixão e usa a teoria como forma de defesa contra os sentimentos perigosos produzidos pela literatura.
No livro A eloquência dos Símbolos, Edgar Wind afirma que "Platão sacrifica os direitos do artista às exigências da sociedade, quando pretende que o legislador force o artista por meio da ameaça de expulsão da cidade a representar os temas que promovam a admiração dos feitos heroicos e o desejo de imitá-los, e a empregar somente os meios de expressão que revigorem a alma e não a façam adormecer, desejando assim eliminar de Homero e Hesíodo todas as passagens que possam pôr em perigo a adequada educação dos moços".
Ora, a teoria agora substituiu o totalitarismo da República de Platão, que não suportava as liberdades imaginativas da poesia. O que a teoria faz é negar o prazer do texto, dizendo que ele é algo impuro, subjetivo, do reino das trevas (em oposição ao racionalismo iluminador e esclarecedor da teoria). Teoria: o prazer cognitivo substitui o prazer estético, ler a receita substitui o prazer de saborear o bolo, passar os olhos pelo guia turístico substitui o prazer da viagem, a masturbação substitui o ato sexual.
Não se trata de simplesmente massacrar a teoria, mas de colocá-la no seu devido lugar. O estudo dos meios de acesso às obras não pode substituir o sentido da obra, que é o fim. Conhecer as teorias literárias (de que natureza sejam, sociológicas ou estruturalistas etc.) não pode, portanto, ser um fim em si mesmo, "sem falar que dificilmente poderá ter como consequência o amor pela literatura", avisa Todorov.
A autonomia da arte gerou também a autonomia do prazer gerado pela arte ― o gozo desinteressado ou estético, como anotava Kant (não se ama mais o Cristo de Velásquez por razões religiosas, mas pela paixão estética que ele nos causa).
Como afirma Todorov, a partir do século XVIII a arte passa a encarnar tanto a liberdade do criador quanto a sua soberania, sua autossuficiência e sua transcendência em relação ao mundo. "Cada um dos movimentos consolida o outro: a beleza se define como aquilo que, no plano funcional, não tem fim prático, e também como o que, no plano estrutural, é organizado com o rigor de um cosmo. A ausência de finalidade externa é, de algum modo, compensada pela densidade das finalidades internas, ou seja, pelas relações entre as partes e os elementos da obra. Graças à arte, o ser humano pode atingir o absoluto".
Os românticos sabiam que a arte é conhecimento do mundo por outras vias que não as da razão e do empirismo (como nas ciências). O que faz de Shakespeare um grande dramaturgo é o fato de ele possuir uma visão profunda sobre a essência do homem. O conhecimento que ele nos transmite, no entanto, não vem de forma explicativa, mas como efeito de sua arte sobre nós.
A função da arte (se é que ela tem função), diz Todorov, é nos educar para descobrirmos facetas ignoradas dos objetos e dos seres que nos cercam. Turner não inventou o fog londrino, mas foi o primeiro a percebê-lo e tê-lo mostrado em seus quadros ― de algum modo ele nos abriu os olhos.
Para Todorov "o objetivo da literatura é a própria condição humana, aquele que a lê e a compreende se tornará não um especialista em análise literária, mas um conhecedor do ser humano. E ter como professores Shakespeare, Dostoiévski e Proust não é tirar proveito de um ensino excepcional?".
Como dizia Malevitch, devemos considerar a pintura como uma ação que tem seus objetivos próprios. Isso serve para todas as artes, e conhecer esses "objetivos próprios" só é possível ouvindo a própria obra dizer o que eles são, da forma que ela mesma sabe e quer dizer. É preciso, então, naufragar no reino da Sereias encantadoras.
E como nos ensinou Giambattista Vico, além da linguagem racional existe outra, que também produz conhecimento sobre o mundo, ela é a linguagem poética, com sua razão própria.
Todorov termina seu livro com uma pergunta e uma resposta: "O que devemos fazer para desdobrar o sentido de uma obra e revelar o pensamento do artista? Todos os 'métodos' são bons, desde que continuem a ser meios, em vez de se tornarem fins em si mesmos".
Afinal, para quem ama a literatura ou qualquer arte, o fim é a própria obra em si e a liberdade que ela nos transmite. Como anotou Starobinsky em A Invenção da Liberdade, "a obra de arte é o ato por excelência da consciência livre".
A literatura é uma oportunidade de você dizer verdades como se ficção fosse. É um momento em que possamos trabalhar a cultura, o preconceito, a visão popular e dar a ela outros sentidos. Na literatura você inverte o olhar e os pensamentos.