Aranhas e missangas na Moçambique de Mia Couto | Marcelo Spalding | Digestivo Cultural

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Quinta-feira, 6/8/2009
Aranhas e missangas na Moçambique de Mia Couto
Marcelo Spalding
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+ 2 Comentário(s)

Mia Couto não é o melhor escritor africano de língua portuguesa, nem o mais político, nem o mais original, mas talvez seja o mais clássico, o mais requintado, o mais festejado deles. Autor de obra sólida, personalidade literária, postura europeia e temática contemporânea, é nome pronto para ganhar o Prêmio Camões, destinado a escritores de língua portuguesa (e não me surpreenderia se chegasse ao Nobel).

Muito já foi dito e escrito sobre Mia Couto no Brasil, e mesmo aqui no Digestivo. O melhor é a entrevista concedida a Elisa Andrade Buzzo, mas tem também uma singela resenha que escrevi sobre seu romance O outro pé da sereia, publicado em 2006. Entretanto, como a produção de Mia é vasta, e como por vezes demora um pouco para desembarcar no Brasil, muito se tem ainda para ler de e se escrever sobre Mia Couto.

O fio das missangas (Companhia das Letras, 2009, 146 págs.) é um desses livros que demoraram para atravessar o oceano e ser editado por uma editora brasileira. Publicado pela Editora Caminho em 2003, traz 29 contos curtos entrelaçados tal qual miçangas (não por acaso o título). Mas dessa obra não se pode dizer o que sempre se diz de obras de escritores africanos, que busca ou marca identidades, que denuncia desigualdades e opressões, que transmite pelas palavras a cultura tão diferente do povo africano. Não, dessa vez a Moçambique de Mia Couto é representada por histórias contemporâneas, familiares, conflitos que bem poderiam se passar em cidades do Brasil, de Portugal ou da França.

Sem abrir mão da linguagem que o consagrou (chamada pelos editores de "poética", mas que bem poderia ser definida como "deslizante" ou "deliciosa") e de algumas referências a termos moçambicanos, Mia produz contos quase crônicas, partindo de singelos episódios diários, familiares, para temas e conflitos universais como o afeto, o desgosto, a compaixão, a cumplicidade.

Em "O cesto", uma mulher aguarda com certa ansiedade e pressa a morte do marido, que agoniza no hospital, até que ele morre e a viúva nos revela, em sua narrativa, que "ao contrário de um alívio, me acontece o desabar do relâmpago sem chão onde tombar. Em lugar do queixo altivo, do passo estudado, eu me desalinho em pranto. Regresso a casa, passo desgrenhado, em solitário cortejo pela rua fúnebre. (...) Amanhã, tenho que me lembrar para não preparar o cesto da visita".

Noutro conto, "Na tal noite", um narrador em terceira pessoa conta a visita anual de Sidónio Vidas, um episódico esposo, que na noite de Natal chega cada vez mais rico e com cada vez menos presentes para os dois filhos. Conversam, ele vai embora cedo e logo chega o vizinho, senhor Alves, ao que a mãe lembra os filhos, como o fizera na chegada de Sidónio: "já sabem: ao sinal combinado, vocês desaparecem das vistas!".

A cumplicidade está presente também em "Mana Celulina, a esferográvida", conto que sugere um incesto, narrado pelo homem que assiste sua irmã, a "completamente grávida" Celulina, chorar enquanto o pai ameaça determinado rapaz, acusando-o da desonra. No final, "ninguém notou o piscar de olhos que ela me dirigiu, em cúmplice ternura".

Nesse rol de temas familiares tem espaço para o futebol, em "A carta de Ronaldinho" e "O mendigo Sexta-Feira jogando no Mundial"; para a depressão, em "O rio das Quatro Luzes"; para a questão racial, em "O novo padre"; e até para a poesia, em "O menino que escrevia versos".

Mas dois contos merecem especial atenção, um pela atualidade do tema proposto e outro pela originalidade da forma com que propõe um tema antigo.

"O dono do cão do homem" inicia assim: "conto-vos como fui traído não pela minha amada, mas pelo meu cão". A história começa com a narrativa de um singelo passeio: "Aos fins da tarde, eu o levava a passear. Isto é: ele me arrastava na trela. Bonifácio é que escolhia os atalhos, as paragens, a velocidade. E houve vezes que, para não dar inconveniências, eu me rebaixei a ponto de lhe recolher o fedorente cocó". Mas a pergunta seguinte desencadeia a inversão de papéis ― e valores ― proposta pelo conto: "Prestei tal deferência a meus próprios filhos?". Mais do que isso, o narrador dirá: "Quando me notavam era por acidente ou por acréscimo. Eu, humildemente eu, na outra extremidade da trela. Eu, o atrelado, de simples raça humana, sem prova de pureza. O meu cão, senhor e dono, estava acima dos verbos animais".

O final do conto não vem ao caso, é uma espécie de inversão física dos papéis entre o cão e o homem, mas a própria abordagem de tema tão cotidiano e tão pertinente já vale a referência. E não temos aqui clichês pró ou contra os cães, o narrador reconhece a conquista de espaço dos animais, os admira, mas talvez com lucidez exagerada percebe nessa conquista uma perda de espaço dos humanos. E quem já não se sentiu assim passeando com um belo exemplar canino por um parque?

Já "A infinita fiadeira" retoma o feitio de fábula para contar a história de uma aranha que se recusava a ser como as outras: "Não faço teia por instinto", dizia, "faço por arte". Os pais, naturalmente, ficaram muito desiludidos e foram falar com o Deus dos bichos para que tomasse uma solução, e "num golpe divino, a aranha foi convertida em pessoa". O fecho da fábula merece ser transcrito na íntegra:

"Quando ela, já transfigurada, se apresentou no mundo dos humanos logo lhe exigiram a imediata identificação. Quem era, o que fazia?

― Faço arte.
― Arte?

E os humanos se entreolharam, intrigados. Desconheciam o que fosse arte. Em que consistia? Até que um mais-velho, se lembrou. Que houvera um tempo, em tempos de que já se perdera memória, em que alguns se ocupavam de tais improdutivos afazeres. Felizmente, isso tinha acabado, e os poucos que teimavam em criar esses pouco rentáveis produtos ― chamados de obras de arte ― tinham sido geneticamente transmutados em bichos. Não se lembrava bem em que bichos. Aranhas, ao que parece."

E assim saúdo que Mia Couto seja uma espécie de ranha, não mais luso-africana, moçambicana ou da língua portuguesa, mas uma aranha de voz universal. Até porque temos cada vez menos cérebros talentosos teimando em criar esses pouco rentáveis produtos.

Para ir além






Marcelo Spalding
Porto Alegre, 6/8/2009

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COMENTÁRIO(S) DOS LEITORES
6/8/2009
21h31min
Mia Couto, assim como Manuel Rui, são excelentes escritores que o Brasil precisa começar a ler. Ainda mais agora que todos falam na questão da africanidade, na diáspora africana que brilha no mundo todo, desde a Inglaterra, os Estados Unidos, o Brasil e outros países, e entender sempre que no Atlântico não circulou apenas corpos humanos, mas sim pensamentos, filosofias, cérebros, magias, e ternuras sem fim.
[Leia outros Comentários de manoel messias perei]
9/8/2009
10h09min
Dizem que teimosia é uma característica inconveniente. Será que chegará o tempo em que todos os cérebros talentosos pensarão: teimar, pra quê? Afinal, não se faz arte sem propósitos, sem consciência dos seus possíveis efeitos, ou não deveria ser feita assim, sem intenções, principalmente por cérebros talentosos. E fazer arte não é rentável, porém, a arte é rentável, sim, para alguns, que às vezes nada contribuíram pra sua produção... Mas a arte também é um poderoso instrumento de luta, de libertação, ainda mais para aqueles que não conseguem se imaginar empunhando armas pra defender seus espaços, o direito a uma identidade própria, pra si mesmo, para os seus conterrâneos, para a sua nação. A arte é uma forma especial de conquistar novos territórios, os africanos descobriram isso e estão assim ampliando seu lugar no mundo. Não sem merecimento, estão mostrando que têm valor, como quaisquer outros homens, e que merecem igual respeito, igual tratamento, em todos os campos de conquista da humanidade.
[Leia outros Comentários de Cristina Sampaio]
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