Você já deve ter passado pela situação. Pode ter acontecido com os discos de vinil ou as fitas cassete que ouvia no carro, dependendo de sua idade. Quem sabe com a videoteca recheada de filmes em VHS ou shows em DVD. Se não aconteceu, certamente acontecerá com as pilhas de CDs, organizados por ordem alfabética ou musical, em torres imponentes enfeitando a sua sala. Estrategicamente localizadas (inclusive as fitas escondidas no porta-luvas, para serem achadas pela pessoa certa), estas pequenas ou grandes coleções de bens culturais eram a sua cara. Serviam para a visita puxar assunto, e mostravam o quanto você era sensível, tinha um gosto sofisticado ou uma queda para o trash.
Pois esses objetos adquiridos um a um, cada qual com a sua história, que reunidos eram o espelho de sua alma, estão em extinção. De repente, viraram nada. Havia mudado a tecnologia e ponto final. Só restaram os livros. Por enquanto.
Isso porque vem aí o leitor eletrônicos de textos, que vai engolir os livros como o iPod fez com os CDs e LPs que você costumava alisar. Há controvérsias quanto à velocidade e o alcance da novidade. Afinal, ao contrário dos exemplos citados acima, o livro tem a vantagem de não enguiçar, como bem lembrou Millôr Fernandes. Mas se a tecnologia for mesmo formidável, como a das máquinas fotográficas digitais, babau. Adeus livros.
O problema é que essas "plataformas ultrapassadas de conteúdo" são, antes de tudo, objetos. E o ser humano, desde os tempos do baú da vovó, se apega a objetos, é capaz de ter uma relação importante com eles. Não estou falando aqui de consumismo, de gente que compra coisas para dizer que tem, mas de pessoas que, ao longo da vida, colecionam peças com significados que vão muito além de sua forma objetiva ou sua utilidade prática.
Conheço apenas uma ou duas pessoas que não se apegam a qualquer objeto. Mas também há os que mudam de país e não se sentem estrangeiros _ há de tudo na diversidade humana, e as exceções estão aí para confirmar as regras. O fato é que a grande maioria já sofreu para jogar no lixo aquela jaqueta jeans puída, lembra com nostalgia do primeiro automóvel, guarda souvenirs bregas de viagem, resiste a se desfazer de uma penca de coisas inúteis no armário. Resiste, até ser vencido por um argumento final: aquele objeto não serve para mais nada. Foi assim que jogamos no lixo os discos de vinil que não tinham mais vitrola, ou as fitas que não tinham videocassete para serem exibidas.
Não tente me convencer de que suas músicas e filmes apenas mudaram de lugar, pois as coleções estariam a salvo em seu hardware de estimação. É impossível ter a mesma relação com o computador que será trocado no ano que vem. O chip de seu celular jamais vai lhe despertar a mesma emoção de quando você encontrou uma caderneta antiga de telefones no fundo da gaveta, ou de quando leu os compromissos de anos atrás numa agenda desgastada de colégio. Você abriu a agenda, curioso, e caiu dela um papelzinho. Talvez um recibo de lavanderia. Melhor: um telefone rabiscado com um nome embaixo. Quem era Débora? Quem foi Sérgio? Você tenta se recordar, examinando com as mãos a textura do papel, observando o desenho da letra. Se o papel estiver perfumado...
Nada disso. Esqueça cheiros e tramas. Agora tudo é diferente. As novas gerações já devem estar se adaptando a um mundo asséptico, sem os objetos que entulhavam e davam vida às nossas estantes. Na teoria, nossa trajetória e gostos pessoais continuarão registrados, agora nos arquivos dos computadores, guardados em memórias infinitas e com possibilidades de catalogação muito melhores. Ainda por cima, poderão ser compartilhados com o mundo, como aconteceu com os diários secretos que se tornaram blogs. E você ainda queria um perfume, ora essa.
Talvez não precisemos mais de objetos. Nossas salas estão condenadas a abrigar estantes vazias, preenchidas apenas por peças de decoração impessoais, como se morássemos em um flat. Restará a opção de nos expressarmos por meio de projetos de arquitetura criativos ou um design mais arrojado. Tomara que as visitas aprendam a conversar sobre o assunto.
Estava eu assim, entre triste e conformada, quando a Amazon me salvou. Ou melhor, roubou os livros que tinha vendido aos seus compradores. Já olhava com saudades para as minhas estantes, quando descobri que os pobres compradores de livros do Kindle na verdade estavam apenas pagando por uma licença para lê-los. Em última análise, trata-se de um direito que sempre poderá ser contestado judicialmente, como aconteceu com - ironia das ironias - as obras de George Orwell 1984 e Revolução dos bichos. E eu pensando que esses leitores "tinham" seus livros. Fiquei feliz por possuir os meus de fato, e já ter desenvolvido uma estratégia para eles não sumirem das prateleiras por causa dos empréstimos para amigos esquecidos.
Foi então que percebi porque muita gente ainda prefere "ter nas mãos", literalmente, álbuns de fotos impressas, discos de vinil, mídias com filmes que não vão sumir quando o computador der pau e vídeos que podem desaparecer do YouTube amanhã. Quando um objeto representa uma parte da gente, ninguém quer correr o risco de ser assaltado pela tecnologia no meio da madrugada. No caso dos livros, a opção de tê-los realmente, e não virtualmente, é ainda mais óbvia: sua história e simplicidade nos enchem de segurança em relação ao futuro. No máximo, precisaremos de um par de óculos mais potentes e alguma vigilância em relação às traças. Nossas estantes de livros estão salvas.
Me delicio vendo fotos amareladas que me recuso escanear, confesso que os discos de vinil se foram (talvez pela falta de espaço), mas ainda mantenho livros - visíveis, palpáveis e sedutores - na estante e meus porta-retratos ainda suportam fotos não digitalizadas nem photoshopadas... E ainda guardam a espontaneidade do momento.