Dia desses escrevi um textinho pro Digestivo falando das minhas influências, de autores e artistas que foram e são importantes para mim. Ou seja, uma coisa bem particular e, por isso mesmo, pouco interessante. Independente da importância, o lance é complicado, porque falar de dez ou quinze autores/artistas sempre vai ser uma traição com os muitos outros que ficaram de fora ― além do mais, esse tipo de lista nos faz parecer mais insignificantes do que já somos. Um desses caras que não apareceram na minha fajuta e incompleta listinha foi Raulzito. Por conta da efeméride dos 20 anos da morte do baianão, a vida do cara tá sendo destrinchada pela mídia, com capa na Rolling Stone nacional, edição especial da Caros Amigos, coluna do Nelson Motta no Jornal da Globo, livros pipocando, uma biografia que já tem cinco anos de gestação e um filme a ser lançado ainda este ano.
Os especialistas e saudosistas gostam de afirmar que Raul sempre fora tratado como o cachorro louco da música brasileira, um cara que não se enquadrava na MPB e era a legítima mosca na sopa, um intruso. Tudo bem, isso pode até ter sentido, mas é só olhar para lado pra constatar que é, também, uma meia verdade. Tá certo que no Brasil é preciso morrer pra ser notado. Até o Sarney, se morrer amanhã, pode correr o risco de ser lembrado como um político moderno e um escritor notável. Da mesma forma que Lennon, morto, virou símbolo de uma geração e McCartney, vivo, é apenas um músico com um passado brilhante.
Mas no caso do Raul isso parece um pouco diferente: não acho que a trajetória dele seja mais um daqueles exemplos em que o artista é amado pelo público e rechaçado pela crítica, como acontece com o parceiro mais famoso de Raulzito, Paulo Coelho, no meio literário, por exemplo. Raul sempre foi um artista popular, mas também ganhou muitas linhas elogiosas dos críticos por sua mistura, originalíssima, de rock com música nordestina. Claro que apanhou também, mas isso é do jogo. Então, tentar ver o Raul como uma ave desgarrada, que lutou contra tudo e contra todos para chegar ao seu objetivo, é querer colocar mais tempero no já recheado acarajé do baiano.
Raul Seixas foi e é importante não apenas por sua rebeldia juvenil, mas porque soube falar para muitas vozes sem perder um naco sequer da inquietação artística que sempre o moveu. Se não tá botando fé, faça um teste: coloque pra tocar "A maçã" e depois rode "Rock do diabo". São músicas completamente diferentes, de um artista de múltiplas vozes. "A maçã" é uma música brega, inclusive regravada por artistas bregas, de um pieguismo atroz, mas que na voz do Raul parece poesia. Já "Rock do diabo" é uma pancada no ouvido que só poderia ter sido escrita por alguém completamente diferente do compositor de "A maçã". Por essas e outras, o clichê da metamorfose ambulante sempre insiste em aparecer em um texto sobre Raul. Apareceu!
Os flertes com a cultura nordestina, com as modas de viola e com o som sertanejo (o de raiz, claro), deixaram a música de Raul Seixas tão próxima da cultura brasileira quanto da americana, já que o cantor nunca deixou a pegada rocker desgarrar de som. Raul foi fiel às suas origens e ao gênero que escolheu ainda adolescente até o fim. A panela do diabo, seu último disco, gravado com Marcelo Nova, traz um monte de roquinhos com aquele piano tão característico das músicas de Little Richards e Jerry Lee Lewis, dois pioneiros do rock que Raul amava. Nesse disco, há ainda outro elemento bastante peculiar do Raul artista: o humor crítico. "Pastor João e a igreja invisível" é uma música que nasceu atual e, parece, não envelhecerá tão cedo.
Outro fato que ajuda na manutenção da popularidade de Raul é que sua discografia tem um nível de regularidade impressionante. Raul não fez discos que se firmaram como grandes marcos da nossa discografia (Krig-há, bandolo! é geralmente citado como sua obra mais importante, mas não faz jus a esse título), mas sim dezenas de trabalhos com um bom nível de qualidade. Na discografia de Raul Seixas, não há clássicos absolutos, nem discos descartáveis. Mesmo os álbuns com raridades, como O Baú do Raul e Raul Rock Seixas, trazem canções interessantes não apenas para fãs. Com seu poder de comunicação, Raul trouxe para o rádio teorias obscuras, profetas e ideias malucas, mas também falou sobre coisas do cotidiano de uma maneira direta e simples. Assim, com a guitarra a tiracolo e um triangulo na mão, Raulzito conseguiu o mais difícil para um artista: agradar a um público tão plural quanto sua música.
Coloque, em um churrasco de família, um disco de Raul e verás. A sogra, quase entrando nos 60, vai cantarolar algum trecho de algum grande sucesso de Raul. É como o Roberto Carlos, ninguém passa incólume por ele, há sempre um refrão, uma frase solta ou mesmo um título de música no subconsciente esperando a hora de ser lembrado. Claro que ser popular não é garantia de qualidade, assim como o inverso também é verdadeiro. Mas, como diz Paulo Coelho no texto que escreveu para a Rolling Stone, o Raul ensinou a muita gente que "cultura popular não é, necessariamente, uma coisa negativa". E para quem gosta de música, esse tipo de pensamento deveria servir como mantra.
Em um país conhecido por se esquecer de sua História, é mais do que importante esse auê em torno da figura e da obra de Raulzito. A torcida agora é para que a biografia escrita pelo jornalista Edmundo Leite faça o que as dezenas de livros sobre o cantor ainda não fizeram: revelar a vida e a obra de Raulzito de forma isenta, sem as paixões tão características dos projetos que se atém a grandes ídolos.
Raul realmente nunca se afastou da cultura popular. Tanto é que Gilberto Gil tocou violão na canção "O dia em que a Terra parou" e a banda de Jackson do Pandeiro participou da gravação da música "Os números". Mas, com certeza, o mais impressionante da sua obra musical é ser executado tanto por Chitãozinho e Xororó quanto por Los Hermanos ou Tom Zé, e continuar soando como Raul Seixas...