COLUNAS
Segunda-feira,
14/9/2009
Um homem: Klaus Klump, de Gonçalo Tavares
Ricardo de Mattos
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"Não te atreves a cuspir num lobo, mas se necessário mijas para cima da cabeça de um cão." (Gonçalo Tavares)
O escritor Gonçalo Tavares nasceu em Luanda de Angola no ano de 1970. Passou sua infância em Aveiro, já em Portugal, país onde publicou em dezembro de 2001 seu primeiro trabalho, O Livro da Dança. Desde então granjeia reconhecimento no Brasil, na Itália, na França e na Sérvia, além de receber os mais importantes prêmios portugueses, como o Branquinho da Fonseca e o Grande Prêmio do Conto Camilo Castelo Branco. Sua obra alastra-se pela Europa e pelo mundo através das traduções de seus romances, contos, ensaios e poesias. É autor sofisticado que presume, à maneira de Jorge Luis Borges, que o leitor compartilhe de suas leituras. Gonçalo deixou de ser um iniciante promissor para tornar-se um jovem clássico. Assistimos sua participação em uma das "mesas" da FLIP de 2006, quando mais falava-se a respeito de sua série intitulada O Bairro, local imaginário onde os vizinhos seriam os "senhores" Valéry, Brecht e Calvino, entre outros.
Um homem: Klaus Klump (Companhia das Letras, 2007, 120 págs.) é o primeiro livro da quadrilogia O Reino, sucedido por A máquina de Joseph Walser, Jerusalém e Aprender a rezar na Era da Técnica. Este romance ― cujo título onomatopaico traz também uma aliteração ― é curto: 115 páginas preenchidas com folga. O que não significa leitura ligeira. Gasta-se pouca tinta para pintar muito, criando relatos fortes e salientando retratos. Na prateleira, faz justo par com Boa tarde às coisas aqui de baixo, de António Lobo Antunes. Irmanam-se em tema e peculiaridade da expressão. Entretanto, dos quatro volumes, Jerusalém teve maior repercussão e garantiu a Gonçalo o prêmio José Saramago.
Nascido o autor em Angola, a primeira tentação do leitor é situar a trama neste país da costa ocidental africana, lar de significativa parcela dos ancestrais de nossa própria população. Depois, supor que ele narra o presenciado na infância, antes de partir para Aveiro. O que colhemos de sua biografia, porém, não autoriza a simples imposição destas conclusões. Na década de setenta do século passado, Angola dividiu-se entre movimentos pela independência e ― alcançada esta e instalado o governo de Agostinho Neto ― a guerra civil. As facções guerrilheiras como a MPLA, a FNLA e a UNITA promoveram agressivas ações intestinas que derivaram até o presente. Anônimo o cenário bélico, o olhar centra-se no mal em si da guerra e no perverso efeito secundário que é o transtorno interior causado às pessoas. Gonçalo excede o meio, recolhe semelhanças algures e cria um texto geograficamente neutro mas de leitura universal.
Nos países de instabilidade política, há um roteiro relativamente seguro a se observar. Uma força política ou social busca a supremacia e outra resiste-lhe. Almeja-se o poder em si, não a implantação de melhorias gerais através dele. "Tudo deve mudar para continuar do jeito que está", conforme Lampedusa faz seus personagens repetirem em contexto ligeiramente diverso, mas de mesmo cinismo incômodo. Gerado o conflito, uma ganhará o poder e outra refugiar-se-á na clandestinidade, onde fomentará a insatisfação e preparará o novo confronto. A insegurança torna-se o fio que alinhava os períodos. Às pessoas cabe seguir seus partidos na alternância do poder, ou acatar a ordem do momento. Nas palavras de Gonçalo, "aprendemos novas rimas para acompanhar o nascer do dia, ou recusamos a aprendê-las". A Klaus Klump parece indiferente quem ganhará ou quem perderá, quem tem razão ou não. Seu envolvimento com a resistência objetiva, em primeiro lugar, reparar ato inicial de covardia. Klaus não é o soldado-humanista-botânico que vimos em Jünger, mas alguém caído no abismo da autopunição.
Distinguindo entre resistência e colaboracionismo, o escritor traça seus melhores perfis, como o da personagem Herthe e de seu marido Leo Vast. Pérfidos, mas não deixam de ser materializáveis. Ela entrega-se aos combatentes com maior probabilidade de êxito final. No seu casamento, não hesita em trair, num só ato, seu irmão e o novo marido. Mal casada e já viúva, une-se a Leo visando garantir o próprio conforto, bem como dos familiares. No seu Diário de uma guerra estranha, Jean-Paul Sartre questiona quase inocentemente acerca dos distúrbios que viveu há setenta anos: "Seria manipulação dos capitalistas? Mas eles nada têm a ganhar com esta guerra. Fizeram tudo para evitá-la..." Através de Leo Vast, Gonçalo acaba mostrando que há, sim, senhores para quem a Paz não é lucrativa. Aproveitando a deixa, este tema foi bem abordado pelo alemão Rolf Uesseler no livro Guerra como prestação de serviços .
Para ir além
Ricardo de Mattos
Taubaté,
14/9/2009
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