A Lógica do Cisne Negro, de Nassim Nicholas Taleb | Julio Daio Borges | Digestivo Cultural

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Sexta-feira, 4/12/2009
A Lógica do Cisne Negro, de Nassim Nicholas Taleb
Julio Daio Borges
+ de 18300 Acessos
+ 1 Comentário(s)


Black Swann by Carolincik

* A Lógica do Cisne Negro, de Nassim Nicholas Taleb, pela editora Best Seller, ficou mais conhecido por, de uma certa maneira, "prever" a crise do subprime no ano passado. Junto com Nouriel Roubini, o "Dr. Doom", Taleb era um dos que melhor descreviam o cenário apocalíptico em que o mundo mergulhara, oficialmente, a partir de 15 de setembro de 2008. Não sei se fui ler o livro com essa expectativa, mas é bem provável. Na realidade, uma coluna da professora Eliana Cardoso, no Valor - com quem eu me encontrara pessoalmente, por outros motivos -, justamente, indicava que não se tratava de um best-seller oportunista, tentando "fisgar" incautos. E duas coisas me chamaram logo a atenção na contracapa. Primeiro, obviamente, o elogio de Chris "Free" Anderson - que não era nada econômico e classificava Cisne Negro como "uma obra-prima". Também uma citação tirada do próprio texto, contando a história da descoberta dos primeiros cisnes negros na Austrália. Como, na Antiguidade, não se conhecia o continente australiano, havia a certeza de que todos os cisnes eram brancos. Bastou um único cisne negro - no dizer do Taleb - para que milhares de anos de crença, em cisnes exclusivamente brancos, viessem abaixo. Outros "cisnes negros" - na orelha do livro - que me convenceram a lê-lo de imediato: o 11 de Setembro e, claro, o Google.

* Antes de entrar no tema propriamente dito, gostaria de tecer algumas considerações gerais sobre o livro, que está longe de ser técnico, escrito no chamado "economês", ou tido como hermético pelos não versados em ciências exatas. De certa forma, me identifiquei com Nassim Nicholas Taleb porque ele trabalhou no "mercado", mais precisamente em Wall Street, mas conserva um interesse raro por ciências humanas, mais especificamente filosofia, algo difícil de se encontrar em "especialistas" nessa área (ainda que ele deteste a palavra). Eu igualmente trabalhei em bancos, cultivei um gosto por humanidades, apesar da minha formação em engenharia, e, ultimamente, volto a me sentir atraído por ciências econômicas (um dia explico isso aqui). Fora essa "coincidência", digamos assim, Cisne Negro pode ser lido como uma longa conversa, pois, embora seu autor tenha um conceito a apresentar, e a "provar", o livro é, por falta de melhor termo, "circular", recheado de passagens autobiográficas e opiniões bastante pessoais. (Senti identificação, novamente, porque escrever um "tratado" é uma ambição que, às vezes, nutrimos, mas evitar a primeira pessoa, e as "páginas da vida", soa quase desumano no mundo de hoje.)

* O "cisne negro", em uma das muitas definições de Taleb, é um outlier ou, em bom português, um "ponto fora da curva". É um acontecimento, ou uma ocorrência, de extrema raridade, que provoca um impacto violento e para o qual, posteriormente, tendemos a olhar "em retrospecto". Como os atentados de 11 de Setembro ou a ascensão do Google, ou mesmo a criação da internet, os cisnes negros não podem ser previstos, e grande parte de seu impacto reside nisso. Contudo, passado algum tempo, naturalmente construímos explicações que, refazendo as pegadas da História, nos conduzem inevitavelmente a eles. Ou seja: olhando em retrospecto, chegamos a culpar o governo George W. Bush, ou a CIA, ou o FBI, por não haver previsto, e evitado, a queda das torres gêmeas do World Trade Center, mas, naquela época, talvez não houvesse elementos suficientes para que pessoas, ou instituições, agissem nesse sentido. Do mesmo modo, o Google, e a internet, e o iPod, hoje, fazem todo o sentido, mas não eram assim tão óbvios quando apareceram, por isso transformaram tanto nossas vidas, e continuaram nos "impactando" como poucas coisas no nosso dia a dia.

* A importância dos cisnes negros, portanto, fica mais ou menos evidenciada, mas vai muito além. Para Taleb, os cisnes negros "explicam" quase tudo que existe à nossa volta. Eu acrescentaria que são como grandes "pontos de inflexão", que, a exemplo de uma grande descoberta, uma grande personalidade ou um grande movimento, dão outro rumo à História. E Taleb estende o conceito à nossa vida pessoal... Segundo ele, basta olharmos, novamente, em retrospecto e pensar no que motivou a escolha da nossa profissão ou da nossa ocupação atual; a escolha de nossos parceiros; a eleição de nossos colegas de trabalho; nossas mudanças de casa, de cidade ou de país; ou os revezes que sofremos, as decepções ou traições; o nosso súbito enriquecimento ou empobrecimento. São todos cisnes negros. Mudaram o rumo de nossa existência, sem que conseguíssemos prever, impactando-nos definitivamente e nos fazendo construir narrativas que dessem conta do ocorrido.

* Taleb afirma que a natureza humana não foi preparada para assimilar cisnes negros. A fim de que um acontecimento, para nós, faça sentido, tendemos a "forçar uma ligação lógica", como ele diz, para amarrar fatos, através de "flechas de relacionamento" - pois é mais fácil, para nós, lembrar de uma sequência de eventos, logicamente encadeados, do que armazenar ocorrências aparentemente díspares. Assim, por exemplo, são construídos os mitos - que nada mais são que "histórias" que ordenam, e trazem sentido, ao "caos da experiência humana". De acordo com Taleb, o ser humano tem uma "fome por regras". E também uma certa predileção por "histórias compactas" sobre "verdades nuas e cruas". Não espanta a moda dos "romances edificantes", as anedotas contendo lições de moral ou até os cases dos livros de autoajuda. Desde os Evangelhos até os bancos escolares, somos "ensinados" com histórias, exemplos e até contraexemplos.



* O perigo disso tudo é cair no que Taleb chama de "falácia narrativa". Que os cisnes negros são importantes, neste ponto, todos já sabemos - mas se insistirmos na simplificação retrospectiva nunca aprenderemos a tirar proveito deles (sim, Nassim Nicholas Taleb acredita que isso é possível). O cisne negro, segundo outra de suas definições, é justamente o que escapa a toda simplificação. O contrário das famosas "curvas em forma de sino", as gaussianas, ou, em inglês, as bell curves. Afinal, essas "ignoram os grandes desvios"; em vez de lidar com cisnes negros, preferem evitá-los de todo; e, pior de tudo, passam a seus cultores a ilusão de poder "domar as incertezas". Taleb acredita que o número de cisnes negros só vem aumentando desde a revolução industrial, quando o mundo começou a se "complicar". Numa sociedade cada vez mais complexa, como é a nossa da globalização, as ocorrências de cisnes negros são cada mais frequentes - logo, a melhor alternativa não é fugir deles, mas, sim, encará-los de frente.

* Para se adaptar melhor à vida moderna, periodicamente redefinida por cisnes negros, Taleb recomenda o que denomina "prática da incerteza". Começa em tom de galhofa, mas encerra com um fundo de verdade: pirataria, especulação com commodities, jogar profissionalmente, trabalhar para a máfia ou, simplesmente, realizar empreendimentos em série. Taleb divide o mundo entre "Mediocristão" e "Extremistão" - não soam bem em português, talvez pudessem ser melhor traduzidos, mas, basicamente, designam os nomes de dois "países" distintos. A maioria das pessoas prefere viver no Mediocristão: onde vigora a tirania do coletivo, do rotineiro, do óbvio e, sobretudo, do previsível. Já uma minoria escolhe viver no Extremistão: onde reinam o singular, o acidental, o inaudito e, por oposição, o imprevisível. Agora, tente adivinhar em qual dos dois "países" se está melhor equipado para encarar um "cisne negro"? Acontece que viver no Extremistão requer uma resistência pessoal e intelectual, evidentemente, fora do comum. É a "terra" dos grandes artistas, dos grandes descobridores e dos grandes empreendedores. Afinal de contas, para quem empreende de verdade, de pouca serventia é o "planejamento estruturado", valendo mais o "máximo de experimentação" e um ótimo faro para "detectar oportunidades".

* Nassim Nicholas Taleb tem uma certa prevenção contra escolas, em todos os níveis, embora tenha mestrado por Wharton e doutorado pela Universidade de Paris. As escolas, boas ou más, foram criadas para estimular o pensamento, o raciocínio, o esforço intelectual, a resposta mais lógica, porém mais lenta, porque sequencial, e progressiva. Para viver no Extremistão - e consequentemente tirar proveito de cisnes negros -, é preciso, no entanto, estimular a experiência, o ato reflexo, porém mais rápido, o "raciocínio que corre em paralelo", sem que possamos muitas vezes concebê-lo, e mesmo os erros, e, sobretudo, a intuição. Nesse ponto, Taleb se aproxima de Nietzsche, que se rebelava contra o "racionalismo" de Platão. "Racionalizar" nossas experiências pode ser, conceitualmente, muito bonito, mas, sempre que fazemos isso, alguma coisa do fluxo da vida nos escapa. Por isso, Nietzsche exigia a reabilitação de Dionisio (contrastando com Apolo), a reintegração do homem à natureza (contrastando com a civilização) e o amor ao próprio destino (contrastando com a religião). Não conseguiu reverter séculos de filosofia ocidental, mas Taleb, conscientemente ou não, segue pelo mesmo caminho.

* A crise de 2008 foi, efetivamente, um cisne negro, porque pegou desprevenidas as economias de quase todo o mundo desenvolvido. Embora, olhando para trás, houvesse sinais claros de que a bomba do subprime iria explodir, os prejuízos foram retumbantes, e a Europa e os Estados Unidos pagam, até hoje, pelo ocorrido. Por mais incrível que possa parecer, o Brasil, com seu histórico de crises próprias, e de sofrer com "cisnes negros" de outros países, como mais recentemente do México (1994), da Ásia (1997), da Rússia (1998) e da Argentina (2001), foi o último país a entrar e o primeiro a sair da crise do subprime de 2008 (para quem duvida, a indefectível revista Economist confirma). Esse exemplo do Brasil, naturalmente, não consta do livro de Nassim Nicholas Taleb (afinal ele foi originalmente publicado em 2007). Ainda assim, ele mostra uma aplicação prática do conceito de Cisne Negro - que, como vimos, pode servir tanto à História, com "H" maiúsculo, quanto aos fatos mais importantes de nossas vidas. Esse livro foi, decerto, um dos melhores que li neste ano, embora não tenha sido em todos momentos "fácil" e nem "fluído"... E no final dele, se ainda restava alguma dúvida sobre a ideia de Taleb, ele proclamaria cheio de razão: "Lembre-se de que você mesmo é um cisne negro, leitor!".

Para ir além






Julio Daio Borges
São Paulo, 4/12/2009

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COMENTÁRIO(S) DOS LEITORES
5/12/2009
19h51min
A ideia de "cisne negros" de Taleb é bastante semelhante ao conceito de Real presente nas elaborações do Lacan tardio. Para o psicanalista, o Real se manifesta como o estranho, o imprevísivel, aquilo que faz vacilar a consistência de nossa "realidade", organizada a partir fundamentalmente dos eixos simbólico e imaginário. A perspectiva lacaniana é tão parecida com as postulações de Taleb que, assim como o autor do livro indica que o número de cisnes negros vem aumentando desde a revolução industrial, Lacan entende que nosso presente e futuro sofrerão assaltos do Real como nunca antes foram vistos. Numa entrevista na década de 70 perguntaram ao psicanalista se a religião acabaria: Lacan, placidamente, respondeu que não; pois se uma das funções da religião é dar sentido ao fluxo da vida, ela triunfará mais do que nunca em função das incidências constantes do Real.
[Leia outros Comentários de Lucas Nápoli]
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