Eis uma questão recorrente em salas de aula e mesas de bar: afinal de contas, literatura para quê? Respostas prontas temos várias: ler é viajar, ler é conhecer a si mesmo, ler é trilegal, ler é tudo. Mas raros são os textos sérios sobre o tema, textos que abordem de frente a diminuição do tempo de leitura, do gosto pelos livros, especialmente os literários, do desinteresse social por uma instituição milenar como a literatura. Por isso indico a leitura do livro de Antoine Compagnon Literatura para quê? (Editora UFMG, 2009, 57 págs.), resultado de uma conferência do autor no Collège de France.
Logo num primeiro momento percebemos que essa problemática não é própria do Brasil e sua educação deficiente: Compagnon fala do "berço da civilização" para um público de letrados franceses que um dia estudaram ou conheceram Barthes, Lévi-Strauss etc. E diz:
"Hoje, mesmo se cada outono vê a publicação de centenas de primeiros romances, pode-se ter o sentimento de uma indiferença crescente pela literatura ou mesmo de um ódio à literatura, considerada como uma intimidação e um fator de 'fratura social'. (...) Toda menção ao poder da literatura era julgada obscena, pois entendia-se que a literatura não servia para nada e que somente o domínio dela contava. Mas em nossa época de latência em que o progressismo como confiança no futuro não está mais na ordem do dia, o evolucionismo sobre o qual a literatura repousou durante todo um século pode ter chegado a seu termo".
Preciso nos diagnósticos, o autor não consegue, porém, responder de forma convincente sua própria indagação, embora aponte alguns "para quês" fundamentais. Lembra uma frase de Sartre, por exemplo, que dizia: "mesmo que não haja livro que tenha impedido uma criança de morrer, seu poder nos faz escapar das forças de alienação ou de opressão". "Contrapoder", dirá Compagnon, "[a literatura] revela toda a extensão de seu poder quando é perseguida. Por conseguinte, o enfraquecimento da literatura no espaço público europeu no final do século XX poderia estar ligado ao triunfo da democracia: lia-se mais na Europa, e não somente no Leste, antes da queda do muro de Berlim".
O deleite, é claro, também aparece como um motivo importante para a existência da literatura, mas Compagnon ressalta que "a recusa de qualquer outro poder da literatura além da recreação pode ter motivado o conceito degradado da leitura como simples prazer lúdico que se difundiu na escola do fim do século". Adiante, o autor arrisca que "a literatura deve ser lida e estudada porque oferece um meio de preservar e transmitir a experiência dos outros, aqueles que estão distantes de nós no espaço e no tempo, ou que diferem de nós por suas condições de vida".
A evolução tecnológica e o surgimento de outras mídias para a ficção, como o cinema, não passam desapercebidos pelo autor, que afirma, entretanto, que "a literatura inicia superiormente às finesses da língua e às delicadezas do diálogo", para concluir sua fala, adiante, dizendo ser a literatura não a única, mas mais atenta que a imagem e mais eficaz que o documento, o que é suficiente para garantir seu valor perene. "Ela é A vida: modo de usar, segundo um título impecável de Georges Perec."
Até aqui me ative ao precioso texto de Compagnon, que não poderia mesmo ser definitivo, mas expõe uma ferida aberta e nos permite, também, pensar sobre ela. Afinal, literatura para quê? Agora me proponho a arriscar algumas respostas.
Primeiro, não sou daqueles que acham que a literatura torna o homem ou a humanidade melhores. Meu pai deve ter lido meia dúzia de livros em toda sua vida e é uma pessoa boníssima, enquanto pessoas de ética duvidosa têm estantes abarrotadas de clássicos (lidos ou não), e por vezes se jactam em citá-los (Fausto e O Príncipe, não por acaso, entre eles).
Segundo, não acho que seja impossível vivermos sem literatura. Uma vez uma professora comentou, na faculdade, que era impossível vivermos sem poesia. Contestei, dizendo que muitas pessoas jamais abriram um livro de poemas, e ela me respondeu que na sociedade moderna muitas vezes as músicas, com suas letras, suprem esse papel. Bela resposta, me convenceu. Assim também nenhuma pessoa pode viver sem narrativas, mas pode viver sem ler romances, pois as narrativas estão no cinema, no teatro, nas telenovelas, nos quadrinhos.
Terceiro, não acredito que a literatura ajude alguém a "vencer na vida". Não por culpa da literatura, mas porque "vencer na vida", hoje, significa ter mais dinheiro ou mais poder ou mais respeito, e a literatura por si só não torna ninguém mais rico ou poderoso ou influente. Não por acaso policiais ganham muito mais que professores, e aspirantes a modelos são muito mais valorizada$ que escritores. Sem falar nos jogadores de futebol...
Ou seja, parte desse questionamento de literatura para quê tem a ver também com questionamentos mais amplos que devemos fazer sobre a vida. Viver para quê?, pergunto eu. Se for para acumular riquezas e porres e cargos, a literatura não serve para nada mesmo. Não se iluda. Agora se vivemos para conhecer, ampliar os horizontes, descobrir o outro e nós mesmos, explorar aquela enorme fatia do cérebro inexplorada pela maioria dos homens, a literatura é, sim, fundamental. Se valorizamos a liberdade e a diversidade, a literatura é, sim, fundamental. Se queremos indivíduos críticos e ativos socialmente, a literatura é, sim, fundamental.
Não só a literatura, claro. E está aí, aliás, uma grande confusão: a literatura perdeu muito espaço de 100 anos para cá, de 50 anos para cá, porque seu espaço era exagerado, superestimado. A literatura havia se institucionalizado de tal forma que se confundiu com a arte em si, mas a arte abriga o cinema, a música, o teatro, a ilustração, a pintura, a escultura e, inclusive, a literatura. Nem mais nem menos importante: a literatura é a arte da palavra.
Aliás, talvez responder para quê literatura seja olhar com atenção essa definição: a literatura é a arte da palavra. Ou seja, enquanto existir arte ou enquanto existir palavra, fatalmente haverá alguém fazendo literatura e alguém buscando literatura.
Outra resposta mais afinada com nossa sociedade materialista seria a de que a literatura é uma "vantagem competitiva", porque um leitor de literatura sempre será um leitor melhor, mais preparado para as leituras técnicas, os concursos, os contratos... Mas deixo esse tipo de argumentação para os leitores de Maquiavel.
Gostaria de compartilhar que, já há algum tempo, retirei esta pergunta do meu caderninho. Rabisquei-a com alguma raiva por ter uma resposta, mas uma resposta que não me satisfazia, como se esperasse que alguma mágica saísse dela e me fizesse melhor. Aprendi na pós-graduação (pois, por alguma razão, não acreditaria nisso se não fosse através das vozes de doutores): literatura não serve para nada! A literatura é um fim em si mesmo; você pode até ler para "ser uma pessoa melhor", para "aprender com a vivência de outros", "para sonhar" etc., mas tudo isso pode ser obtido também através de outros meios, como sugerido (o cinema, uma boa conversa com o pai, ou remédios tarja preta). Mas, ao saber que a literatura é só literatura, vim a descobrir que é importante por si mesma, passei a vê-la como algo maior. Cada filme, cada peça de teatro, cada graphic novel... veio através da literatura, ou foi construída através dela. A literatura é grande, um ser autônomo deste mundo, sem a qual vivo, mas pior.
Já me fiz essa pergunta muitas vezes. Tenho a leitura como vício. Leio tudo, até bula de remédio, mas às vezes me pergunto se não é perda de tempo, se não seria melhor trocar os livros por outra atividade mais produtiva ou, melhor, que me trouxesse retorno imediato... No entanto, mesmo pensando assim, não abandono os livros, e perco horas com eles... Fazer o quê???
Claro que dá para viver sem literatura, mas vive-se mais precariamente, a meu ver. A literatura está no âmbito das artes e está no âmbito do simbólico/imaginário. Psicanalistas que estudaram Lacan sabem da sua importância para o equilíbrio proposto pelo nó borromeano. Literatura é tão importante quanto brincar é importante para a criança. Há crianças pobres que jamais pegaram num brinquedo e sofrerão de uma falta simbólica. O mesmo se dá com os livros. Os livros não fazem ninguém melhor, no sentido de ser uma pessoa boa, mas é claro que, estando no âmbito da arte, amplia-lhe o repertório. Tenho para mim, também, que ao ler a história de outras pessoas, no caso eu falo de ficção e, consequentemente, de outros personagens, saímos de nosso mundinho e desenvolvemos a compaixão. Tornamo-nos menos egóicos. É isto. No mais, literatura é prazer, puro prazer... Mas nosso imaginário caminha junto e com ela, a literatura, sempre há um aprendizado. É isto...
O Sr. Marcelo Spalding mistura alhos com bugalhos em seu texto. Seu título é interessante e trouxe-me ao texto com uma certa expectativa, frustrada por uma viagem superficial por tópicos irrelevantes ao título como materialismo, altruismo, gosto por poesia etc. Recomendo ao Sr. Spalding (pertinente ao tema) uma leitura: "O Gene Egoísta" ("The Selfish Gene"), de Richard Dawkins, para entender que a literatura é um dos mecanismos de evolução da cultura da espécie humana, uma evolução tão Darwiniana como a evolução biológica da espécie. Essa evolução cultural é basicamente o que nos separa das outras espécies animais, e portanto a questão real é: evoluiríamos melhor, ou seríamos melhor adaptados sem o mecanismo de passagem de "memes" (leia o livro recomendado) proporcionado pela literatura? Eu, pessoalmente, acho que não, porém, como diria Darwin, teríamos de eliminar a literatura de uma população, esperar umas gerações, e aí teremos a resposta. Obrigado pela oportunidade de comentar.
Acabo de ler o livro de Compagnon e o achei extremamente produtivo em seus questionamentos. A Literatura terá sentido e utilidade na vida das pessoas que estão buscando algo mais, que desejam novas compreensões, novos sentidos. A Literatura nos ajuda a ler o mundo e a nós mesmos. Dizia o Guimarães Rosa que, quando nos lançamos nas questões da língua e do que ela pode produzir, encontramos a nós mesmos. Para mim, tem sido uma viagem altamente proveitosa. É uma pena que algumas pessoas não façam uso desse instrumento de reflexão e de aprendizagem. "O sol doira sem Literatura", dizia o Fernando Pessoa, mas tudo se torna mais significativo com ela. Acredito que o Sr. Spalding foi um pouco simplista em suas colocações, pois seu pai deve ser uma ótima pessoa pelas coisas que aprendeu, pelas leituras da vida que foi capaz de realizar. As narrativas orais, os casos que contamos, como narramos nosso passado, tudo isso é LITERATURA, de alguma forma. Desejo-lhe, sinceramente, felicidades.