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COLUNAS
Quinta-feira,
10/12/2009
Palácio dos sabores 5/5
Elisa Andrade Buzzo
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Nesta altura, minha convivência em Bordeaux já havia mudado o modo como enxergava e degustava a comida. Uma vez que você experimenta alimentos frescos e bem temperados, perceberá que aquele macarrão de saquinho ou a lasanha congelada simplesmente não tem gosto de verdade, mas um alto teor de sal para que algum sabor enfim apareça. Ervas e especiarias são muito usadas pelos franceses para incrementar carnes, por exemplo, é o caso do alecrim ou do anis, que Gilles colocava no frango. O tempero, tão importante quanto o prato em si, geralmente aparece na descrição dos menus na culinária francesa. No inverno, o chef proporcionava aos clientes pratos mais substanciais, "copieux", dizia Coralie. O cordeiro ao leite vinha num prato fundo, forrado por uma guarnição de legumes cozidos e bastante caldo. O aroma da carne leitosa subia em movimentos de vapor tênue e me enchia de ânsia. Ainda assim, era encantador sentir aquele prato agradavelmente quente no inverno.
Voltemos ao tempo, Gilles Boulet entrou na sala em mangas curtas, era outono quando experimentei o gigotin de canard avec galette de pomme de terre et carottes (pato com batatas fatiadas e cenoura). Tornou-se meu prato preferido, embora na época o escolhi na expectativa de experimentar a carne mais apreciada do país: a do pato. Este nada tem a ver com o pato doméstico. É o pato-real, o mesmo que nada tranquilamente no lago do Jardin Public, facilmente reconhecido pelo colarinho branco e pescoço de um verde-escuro intenso. "Attention, c'est chaud!" (atenção, está quente), diz Coralie. Eis o prato alongado e branco como a tela de um artista. Naquele palácio de sabores, os sentidos ficavam a toda prova: o aroma da combinação dos ingredientes e a apresentação do prato culminavam na vontade de experimentar, enfim, aquela oferenda. O gigotin enrolado, enrijecido com um palito e recheado com ervas (mostarda, alecrim etc.) tinha um tom rosa-escuro, a carne era firme e saborosa. Ao lado, a batata ralada em finas lascas, formando uma treliça de casca crocante e interior suculento. Por fim, palitinhos de cenouras cozidas, que em contato com a língua desmanchavam numa entrega quase amorosa.
Antes, ao atravessar a porta de vidro do bistrot, Coralie apareceria saltitante "Bonsoir! C'est pour dînner?" (boa noite, vão jantar?), entenderia-se o chef na cozinha, o som do rádio inundando a sala, já não se sabia quando era o cantor ou sua voz fina cantarolando distraidamente os refrões. Era como se já nos esperassem, sim, era possível, tão vazio o restaurante à noite, aberto para o jantar apenas às sextas e sábados. Domingo fechava religiosamente, como a maior parte do comércio na França. Muitas vezes éramos os únicos e Coralie contava grandes histórias da Normandia, região de onde vinham, da filha única morando em Paris. Vez ou outra Gilles aparecia, os olhos azuis contraídos, e agradecia a presença. Um casal ou outro nos olhava pela vitrine, voltava-se para o cardápio e enfim se decidia a entrar, ou então desaparecia na rua mal iluminada. Em restaurante muito vazio ou muito cheio a gente se sente meio mal - acuado ou encurralado; muito à vista ou sobremaneira escondido, os garçons te olham demais ou nunca te atendem. Agora me ocorre que o Palais de Saveurs era bem frequentado à noite por casais, talvez tivesse mesmo feições de um ambiente privativo, pois a lotação era de apenas cerca de vinte pessoas. E também por gente solitária e tímida, que se afundava na poltrona, procurando a mesa mais longe possível das que estivessem ocupadas. No entanto, lá nós nos sentíamos em casa - admirando as reproduções nas paredes, envolvidos pelo aquecedor e pelo carpete, pelas mãos de Gilles e pela conversa de Coralie ―, como se fóssemos convidados estrangeiros tendo lições daquela civilização.
A noite gelada toma conta de meu corpo assim que deixo o Palais de Saveurs, não sem um último olhar à vitrine. Sua luminosidade amarelada deforma a silhueta do corredor de prédios na rua do Palais Gallien. É o amor que abala os sentidos e confunde as histórias, pois o palácio ― dedicado à Galiene, esposa de Carlos Magno ―, que dá nome a esta rua, nunca existiu. A não ser na imaginação e nas placas. Dobro a rua do Coliseu, aproximando-me da provável versão da história. Arcos decepados pelo tempo escapam das paredes em vestígios de tijolos. Destruída pelos bárbaros, a ruína se ergue hoje vitoriosa e protegida, ainda que mansa, servindo de morada a capim e pombos. Quiçá a plateia vociferava num espetáculo com leões e carne humana fresca, como tudo é naquele restaurante em pleno anfiteatro romano. Havia, sim, um outro palácio, afeito a outros quitutes, igualmente para saciar fomes.
Nota do Editor
Leia também "Palácio dos sabores 1/5", "Palácio dos sabores 2/5", "Palácio dos sabores 3/5" e "Palácio dos sabores 4/5".
Elisa Andrade Buzzo
São Paulo,
10/12/2009
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