Outro dia, um amigo me disse uma das mentiras mais simpáticas que já ouvi. Eu estava no carro reclamando que falo sem parar o tempo inteiro, e que de vez em quando alguém devia me mandar calar a boca (aliás, esta é uma grande verdade). Aí ele me vem com a seguinte bravata: “Você fala muito, mas não fala bobagem”. Meu Deus!! O que é isso?? Tanto esforço para falar bobagem e esse fulano me sai com essa?! Logo ele, um cara tão sabido. Justo ele foi cair neste papo de que o que eu falo faz sentido?!
Eu me formei em psicologia. Resolvi trabalhar dentro de empresas porque afinal vocês sabem que é mais fácil estudar os bichos em cativeiro. Fiz meu estágio em um hospital psiquiátrico e toda quarta ao meio-dia meu pai ligava pra casa pra saber se eu já tinha chegado (“um dia você fica por lá”). Durante os poucos mas intensos meses em que freqüentei o Adauto Botelho, eu me aprofundei no estúpido hábito de pensar na vida. Chegar em casa, tomar banho e deitar na rede pra pensar na vida. Ficar lá, empurrando a rede com o pé, olhando ora para o teto ora para o tapete, procurando alguma coisa complicada que tomasse o meu pensamento até a hora de dormir. Com freqüência eu encontrava, naturalmente a tal “hora de dormir” ficava pra mais tarde e eu ficava lá rolando na cama, com a cabeça zunindo, pensando: ô bosta de vida...
Aí eu pensava nos pacientes do Adauto. Como eles tinham chegado lá, o que tinha acontecido com eles até a internação, por quê, quando, como foi. Como eles sofriam com a falta de respeito, de amor e de higiene naquela pocilga de hospital. Como eles se divertiam com a nossa cara, fingindo entrar em surto quando as estagiárias chegavam no pátio, comendo todo nosso chocolate, fumando todo o nosso cigarro e saindo dando risada. Aí eu pensava no Alienista (grande livro), como o ser humano é medíocre, como o Machado de Assis é genial, como as coisas mudaram tão pouco em 100 anos. Aí eu pensava que até hoje não li Memórias Póstumas de Brás Cubas. Aí eu pensava como o Paulo Francis faz falta. Aí eu pensava como preciso de um sapato novo. Aí eu pensava. Aí eu pensava. Aí eu pensava. Ai, ai, já são 3:30 da manhã e amanhã tem aula...
Eu ficava pensando em todas as coisas no universo e como elas se relacionam, e sempre terminava os pensamentos com: “Hump, saco...” Sabe aquele ditado que diz que quanto maior o seu conhecimento maior a sua ignorância? Que quanto mais você estuda mais você tem consciência do quão pouco você sabe? Que quanto mais você tenta digerir tudo que te acontece mais você enlouquece pensando que nunca vai conseguir? E aí no meio desta fase “cabeça em purê de batata”, eu tava lá enfiada num hospício.
Devo confessar que foi uma das fases mais peculiares da minha passagem por este planeta. Sabe aqueles dias em que você bebe um pouco mais do que a sua mãe gostaria, levanta chapado, sai andando e de repente tudo fica meio sem sentido? Proporção, profundidade, cor, som, conversas, nada é real. Pois então. Imagine sair numa rua qualquer num dia qualquer e de repente ser acometido por um súbito ataque de surrealismo misturado com efeitos de embriaguez (well, sem o enjôo da catchaça...). De repente todo mundo é estranho, as feições das pessoas ficam bizarras, as cores não combinam mais, os sons são distorcidos. Rapaz, devo dizer que eu passei uns meses com um pé de cada lado da sanidade mental... Passei a duvidar de tudo que eu via e achava mesmo que estava ficando louca.
Aí eu concluí que era tudo efeito do excesso de pensar na vida. Quanto mais você tentar mastigar mais você engasga, isso sim. Esse negócio de sanidade é uma bobagem. O normal é uma bobagem. Ele simplesmente não existe! Dentro do Adauto não tem nada que não tenha aqui fora. A gente passa a vida (piora muito quando se estuda psicologia) tentando encontrar o ponto médio da sanidade mental, a referência correta, a forma de existência em perfeito equilíbrio com o universo. Mas não há nada assim. Que coisa hein? A gente precisa enlouquecer para ver que é normal. Que normal é só isso mesmo e que de fato todo mundo é meio louco.
Quando eu contei pro tal amigo que um dia duvidei da minha sanidade mental ele riu. (Ainda não estou bem certa se riu de mim ou comigo. Se achou que “você ainda tem dúvida se é louca?” ou se foi mais para “começo a achar que você fala bobagem sim”... ) De qualquer jeito, eu acho mesmo que todo mundo já questionou sua normalidade pelo menos uma vez na vida. Se ainda não o fez, só está atrasado. E se esforçar para ser normal é a maior prova de mediocridade que uma pessoa pode apresentar. Questionar sempre seu papel, sua postura, suas preferências, celebrá-las, isso sim é bacana! Tirar tudo do lugar, estranhar, repensar, questionar, mesmo que se decida pelo que já estava. Mas é preciso tirar a poeira. Você já fez uma faxina? Não estou falando de passar um Perfex na TV e no som. Faxinão mesmo, daquelas que você tira tudo do lugar, põe tapete pra cima, arrasta o sofá (encontro as coisas mais espetaculares caídas atrás do sofá...). Nesta divertida ainda que cansativa tarefa, a gente sempre pensa em mil outros jeitos de colocar os móveis. E isso é legal, mesmo que no final do dia a gente volte com tudo para o lugar. As coisas ficam onde estavam mas estão arejadas, limpas. Não precisamos mudar a sala toda vez que fazemos faxina, mas é preciso arrastar os móveis sempre pra não juntar poeira.
A gente precisa delirar um pouco pra poder respirar. Precisa arejar o cérebro. Eu por exemplo estou sem dormir pensando se vou ter filhos ou se vou comprar um Porsche preto. Eu!! Que não tenho namorado e ando de ônibus...
Mas sabem como é. Eu penso demais.
E quem pensa demais fica meio louco e acaba falando bobagem.
Xará, adorei sua coluna! Você espelhou muita coisa que passa na minha cabeça também. Aliás, acho que na cabeça de todo mundo. Só que alguns encaram, outros fingem que não está acontecendo.
Adriana,
Uma vez li um texto da Ligia Fagundes Telles em que ela diz que o máximo que podemos fazer é manter nossa loucura em limites aceitáveis pela sociedade, assim não nos internam. Desde então eu tenho "disfarçado" a minha loucura. Sugiro que você faça o mesmo... :o)
Muito legal o texto.
Abraços,
Ana
Depois da leitura desse texto, errei até meu nome. Xáprálá. Eu sempre tive uma vontade louca de, uma dia, acordar e não falar nada com ninguém. Nunca mais. Só olhar e pensar. Mas, sabe como é, trabalho, filhos... O poir, é que o meu maior problema é, justamente, não conseguir parar de pensar! Não é um paradoxo? Gostaria imensamente de brecar minha cabeça, de vez em quando e, por outro lado, suspiro por uma vida calada, só de reflexões. Credo! Deve ser terrível. É melhor deixar isso para os sonhos, mesmo. Quanto aos loucos (nós?), acho que é uma pena, tanto talento humano encostado num canto, só porque não se "encaixam" no que a sociedade precisa. É um tremendo desperdício. Nem sei se a visão da loucura como doença é a mais acertada. Os médicos que me desculpem, mas é isso aí. (Meu pai é médico, nem por isso vou mudar minha opinião a esse respeito).
Sonia Pereira.