O maior problema de elaborar listas não é nem tanto escolher e selecionar, por mais que suas escolhas sejam estapafúrdias aos olhos da maioria. Isso aí entra na conta da subjetividade e do gosto pessoal. O foda mesmo é lembrar o que rolou em um ano, dois, três ou em uma década, como é o caso agora, com o fim dos anos zero zero. Quando você vai ficando mais velho, a vida passa mais rápido. E não me venham dizer que isso é apenas "impressão". É não! O tempo, quando você mais se aproxima do fim, vai ficando escasso. A semana passa voando. O dia não dá pro cheiro. O mês é só um punhadinho de dias ligeiros. E quando menos se espera, nós do Sul, Sudeste e mais alguns Estados brasileiros, já estamos tendo que enfrentar uma hora a mais de sol. O horário de verão é o último aviso aos desavisados de que o ano tá quase no fim. Pra um cara como eu, que não suporta o calor e a melancolia natalina, essa fase do ano é dureza.
Então, o que quero dizer é que a correria do dia a dia te enche a cabeça de uma maneira que é dureza lembrar o que aconteceu no dia anterior. Mesmo assim, levando em conta minha amnésia cultural, vou tentar listar aqui o que li no ano que já ficou para trás. Não é uma lista de "melhores", mas sim de "possíveis", daquilo que vai chegar mais facilmente na minha cachola. Parto do princípio de que, se me lembrei, é porque teve algum valor para mim, marcou de alguma forma. Mas não descarto, também, deixar coisas legais de fora e lembrar só depois que tiver terminado o texto. Sei que vai acontecer.
Sempre fui fascinado por Dalton Trevisan, acho-o, de longe, o escritor vivo mais importante do Brasil. Já havia lido muita coisa dele, mas, por causa de um projeto de mestrado, li todos os livros do vampirão em 2009. Isso quer dizer uns trinta e três livros, mais os exemplares da antiga Revista Joaquim, que o escritor editou entre 1946 e 1948. Até dos livrinhos renegados pelo Dalton ― Sete anos de pastor e Sonata ao luar ― eu descolei cópia. Então o Dalton me tomou grande parte do meu ócio criativo, principalmente no primeiro semestre. Ah, sem contar que o cara lançou livro novo no fim do ano, Violetas e pavões, que é uma pequena obra-prima, um livro que vai rivalizar com seus melhores trabalhos, com certeza. Para fechar, ainda tive acesso a um livro inédito do Miguel Sanches Neto, que deve sair em 2010 pela Ateliê, em que ele destrincha o papel da Joaquim no cenário cultural do Paraná e do Brasil nos anos 1940.
De um contista clássico pra outro bamba das histórias curtas (mas nem tanto), li, na primeira semana de lançamento, O seminarista, do Rubem Fonseca. O melhor romance em formato de conto do ano. O velho Fonseca dispensa as narrativas imbricadas, características de seus romanções (Agosto, A grande Arte etc.), e investe em um personagem carismático, violento e classudo, como seus melhores filhotes literários. Não por acaso, o figura atende pelo nome de Zé, gosta de poesia e fala latim. É um bandido à moda Jean Genet, desses que não se fazem mais. Diferente de Violetas e pavões, O seminarista não está entre as melhores coisas que Fonseca escreveu. Mesmo assim, o livro tem padrão de qualidade que qualquer escritor médio brasileiro, se preciso fosse, faria trato com o capeta para alcançar.
O matador de Rubem Fonseca só não é mais engraçado, divertido e interessante do que um outro Zé, este criado por Reinaldo Moraes e protagonista de Pornopopéia, um dos melhores romances do ano.
Moraes ficou um tempão sem escrever romance, mas tirou o atraso nesse épico da malandragem paulistana. Vai ser difícil surgir um personagem tão escrachado, porra-louca e inescrupuloso quanto o Zé de Pornopopéia. Como disse Moraes em entrevista publicada no Digestivo, seu personagem é um pícaro, um fanfarrão que só quer curtir o hoje, mas ainda assim um cara ciente e até preocupado com sua condição marginal. Quando comecei a ler o livro, lembrei de cara de dois personagens meio quixotescos da literatura: o príncipe Míchkin, de O idiota, e o Mentecapto, do livro homônimo de Fernando Sabino.
Não sei se Moraes se espelhou nesses personagens, mas Zé, o cineasta maldito que escreve roteiros institucionais para sobreviver, certamente é metade mentecapto, metade idiota. E isso o faz, acreditem, muito interessante.
Como muitos leitores, tornei-me fã do Reinaldo Moraes com a edição, da Brasiliense, de Tanto faz, um livrinho que hoje, à luz das décadas, parece mesmo se firmar como o irmão mais novo (apesar de ser mais velho) de Pornopopéia, este o melhor livro de Moraes até aqui.
Mas nem só de lançamento eu vivi em 2009. Há algum tempo venho tentando acertar as arestas com alguns clássicos que ainda não li. E, no ano passado, pelo que lembro, risquei pelo menos uns quatro ou cinco da listinha de espera. Um deles foi Os Sertões, o clássico de Euclides da Cunha que frequentou bastante os cadernos culturais em 2009 por conta dos cem anos da morte do autor.
Considerado um exemplo de jornalismo literário, o livro nada tem de jornalístico. Primeiro que o livro como o conhecemos (minha edição é da Record) não saiu das páginas do Estadão. As matérias que Euclides escreveu para o jornal paulista foram apenas o embrião do livro, mais tarde escrito com a calma que um tomo de seiscentas páginas sobre um dos episódios mais violentos e representativos da história do país exige.
De cara, o livro tem a pegada de um homem de múltiplos talentos. O início enfadonho, com os detalhes geológicos do nordeste brasileiro que tomam praticamente toda a primeira parte do livro, só poderia ser escrito mesmo por um homem como Euclides, um engenheiro que não se conformava em ser apenas um grande escritor. Depois que li Os Sertões, considerei que "A Terra", o primeiro capítulo, era uma espécie de provação aos leitores mais afoitos. É como se Euclides dissesse: "bem, agora que você provou da minha multidisciplinaridade, posso lhe oferecer um pouco de literatura". E é o que ocorre lá pela página oitenta, quando se inicia "O Homem", a segunda parte. A partir daí começamos a ler um clássico. Mesmo com todo preconceito do autor diante do sertanejo, Euclides mergulha fundo na situação dos homens que deram proteção a Antonio Conselheiro e, dessa forma, ajuda o leitor a compreender as circunstâncias do conflito, dando o que se espera de um bom correspondente de guerra, ainda que deixe de lado a imparcialidade.
Ainda sobre clássicos, em 2009 acertei minhas contas com João Ubaldo Ribeiro e seu monumental Viva o povo brasileiro. Quando se lê uma obra como essa, é impossível não se martirizar pelo tempo perdido. O clássico de João Ubaldo é, para mim, um dos vinte maiores romances da nossa literatura. Viva o povo brasileiro está para a literatura assim como Os donos do poder, do Faoro, para a sociologia. Somente um intelectual muito preparado pode escrever um livro como Viva o povo brasileiro, um épico com toque barroco que brinca com nossa História sem ser desrespeitoso ou desonesto. Em uma recente entrevista que fiz com João Ubaldo, ele disse que nunca fez pesquisa ou anotações prévias antes de escrever seus livros. Depois disso, minha admiração pelo escritor se multiplicou e resolvi ler outros de seus títulos que ainda não tinha lido, como O sorriso do lagarto.
Por falar em romanção, desses que param em pé na estante, li O passado, do escritor argentino Alan Pauls, e fiquei muito impressionado. O livro leva o leitor a uma verdadeira viagem literária, com histórias secundárias se entrelaçando ao romance de Sofia e Rímini. É um livro de um escritor com total controle sobre sua literatura, ainda que as elucubrações dos personagens possam sugerir o contrário. Essas "viagens" lembram muito Cortázar, assim como a narrativa minimalista, pormenorizada, faz recordar Proust. Talvez por ser um livro tão singular, o filme de Babenco tenha ficado tão distante do original. É um belo filme, com um ator que gosto (Gael Garcia Bernal), mas que deve ser visto antes da leitura do livro, e não depois, como fiz. Bem, além de ser um grande romance, O passado é um ótimo mote para se discutir a relação da literatura com o cinema.
Se "descobri" Alan Pauls no comecinho do ano, no final me deparei com um escritor que já tinha ouvido falar muito, mas que não havia lido. Raymond Carver ficou famoso, no Brasil, por ser o autor do livro que inspirou o clássico Short Cuts ― Cenas da vida, filmado por Robert Altman em 1993. E foi por essa coletânea de contos que comecei. Como bom fã de Dalton Trevisan, gostei, logo de cara, da economia de Carver na hora de escrever. É um tipo de escrita que dá vazão apenas ao que é essencial. O que pode parecer uma contradição, já que Carver tem como matéria-prima aquilo que, para muitos, é banal. Impossível não compará-lo a Bukowski. No entanto, Carver não é um exibicionista literário como o Velho Safado; guarda para os seus personagens o protagonismo da vida vadia e sem muita esperança que descreve nos contos. Um ótimo escritor que li tardiamente.
De resto, o que lembro é que li O bom soldado, do Ford Madox Ford, um livro que sempre quis ler e não decepcionou. Ótimo romance sobre uma triste história de amor, bem escrito e planejado. Ah, claro, reli também a biografia do Paulo Leminski, que há vinte anos deixou de tomar cana e poetar pelos bares de Curitiba. Passaram pelas minhas mãos uns livrinhos do Hunter S. Thompson, do Vargas Llosa, do Mário Benedetti, do Manuel Puig, do Juan Carlos Onetti, do Sartre, do Camus e do Beckett. O grande Cormac McCarthy também deu as caras com a nova edição de Meridiano de sangue e Todos os belos cavalos, este último achado em um sebo por cinco mangos e lido em uma noite solitária de insônia.
Bem, gostaria de escrever também sobre os filmes que vi (todos os Sergio Leone que encontrei), as exposições de arte e fotografia que frequentei e os discos que ouvi. Mas paro por aqui. Estou olhando minha lista de livros pendentes e posso ler daqui que há O vermelho e o negro, Um retrato do artista quando jovem, a biografia dos Beatles escrita pelo Bob Spitz, Madame Bovary e O som e a fúria esperando pela minha boa vontade. Então é melhor começar 2010 lendo.
P.S.: Acabei de lembrar que li Mencken pela primeira vez em 2009. Ganhei a reedição d'O livro dos insultos e descobri de onde veio a acidez de Paulo Francis.
A listinha dos clássicos não lidos é um problema. Li "Um retrato do artista quando jovem" há uns dez anos, sem saber que era um "clássico". Achei o pior livro que já tinha lido, interessante apenas para quem tivesse dúvidas atrozes sobre sua religiosidade. Ano passado reli-o e minha opinião melhorou um pouquinho. Lógico que tive que pular aquelas digressões religiosas de dez páginas. Já "Madame Bovary", li e gostei. Li depois um excelente ensaio do Mario Vargas Llosa sobre o livro, o que me motivou a relê-lo, com muito sucesso. Outro clássico - "Tristram Shandy", do Sterne - não consigo passar das páginas iniciais (são mais de quinhentas). O livro é incensado por ser inovador (em 1760) mas por causa dos seguidores, que aproveitaram os caminhos abertos por Sterne, parece "coisa antiga", repetição de textos que já lemos. O prefácio do José Paulo Paes é espetacular (já reli várias vezes) e é o que motiva a minha insistência.