Lula, o filho do Brasil. Esse é o nome da polêmica do ano (que mal começou). Já é possível antecipar essa previsão, pois o filme invade não só o debate sobre a produção de cinema nacional (apimentado pela polêmica sobre as leis de incentivo), mas também o debate político. Com orçamento recorde, atmosfera novelesca e elenco global, a película busca mimetizar todos os arquétipos (e feitos) de 2 Filhos de Francisco, se desenhando como a mais controversa cinebiografia já feita por aqui. Feito para emocionar, feito para chorar e, principalmente, feito para vender. Para efeitos cênicos, a discussão sobre o filme é nula, pois não traz nenhuma inovação e não se vende como alta cultura. Sob esse ponto de vista, qualquer crítica fica oca ao analisá-lo sob os mais altos conceitos da sétima arte. Mas como o personagem principal é um presidente ainda em exercício do mandato (e que busca fazer o seu sucessor em ano eleitoral), não há como não analisá-lo sob o aspecto político.
Pode-se argumentar que O filho do Brasil foi feito sem dinheiro público ― o que é verdade ―, mas expõe de maneira grosseira o jogo promíscuo das empresas privadas que patrocinaram o filme, interessadas em adular o governo, com as piores das intenções. O espectador não fica livre nem dos "merchans", como na constrangedora cena em que os personagens pedem uma determinada cerveja, enxertando um slogan que nem existia na época em que o filme se passa. Há de se ressaltar a ótima caracterização do ator que incorporou Lula no filme. Rui Ricardo Diaz reproduz os trejeitos e a voz sem cair na caricatura. E Glória Pires é bastante contida (e por isso mesmo, correta) na interpretação de Dona Lindú, mãe de Lula.
Inicialmente idealizado como uma mistura de documentário com melodrama (vulgo "docudrama"), o diretor Fabio Barreto alterou a rota no meio do caminho e resolveu partir para a ficção, ora omitindo, ora "romanceando" fatos da vida do presidente, para efeitos dramáticos (e mercadológicos). No mais perigoso deles, o episódio em que os sindicalistas jogam o empresário do alto de uma escadaria da fábrica e este morre estatelado no chão, resultando numa histeria coletiva. No livro de Denise Paraná (que serviu de suporte para o filme), Lula "achou que estavam fazendo justiça", compactuando da atitude de seus companheiros. No filme, ele cai em prantos, horrorizado com toda aquela violência ― forjando um Lula humanista e, por isso mesmo, desumanizando-o. Deixando claro que, no filme, a intenção é somente esculpir um mito, tudo o que Lula (supostamente) teria de ruim é empurrado (metaforicamente) para o seu pai, Aristides, interpretado por Milhem Cortaz. Como bônus, entre outras ironias, temos Fabio Barreto e seu pai, Barretão (o Assis Chateaubriand do cinema nacional), admitindo terem sido eleitores de Fernando Henrique Cardoso, incitando ainda mais a (falsa) polêmica entre o ex e o atual presidente e alavancando a promoção do filme.
O ponto mais correto do filme (que se aproxima de um documentário) fica para a formação da figura política de Lula, remontando sua trajetória sindical. Para quem achava que o presidente já levantava as bandeiras de esquerda na luta contra a ditadura militar, vai se decepcionar, pois o Lula que aparece naquela época, além de já ser carismático, era também conciliador, extremamente pragmático e apolítico (sim, no sentido ideológico ― procurando ficar alheio às lutas políticas dos anos 60 e 70). Só depois de liderar as greves no sindicato em 1978 é que Lula ficou famoso no país inteiro, e, posteriormente, foi abraçado pela intelligentsia de esquerda, que viria a fundar o Partido dos Trabalhadores. No filme, temos um bom retrato da gênese do camaleão político que vemos nos dias de hoje, que gesticula com a mão esquerda e manipula com a direita.
Os detratores acusaram o filme de ser eleitoreiro antes mesmo de ele chegar às telas. Ao que os defensores rebateram argumentando que ele não mostrava a trajetória política do presidente (acaba em 1980, pouco antes da fundação do PT). Ambos os lados têm razão... Em termos. Se o filme não mostra os feitos do governo, não pode ser tido como eleitoreiro, mas o desfecho épico, com imagens de Lula eleito em 2002, nos braços do povo, deixa uma mensagem subliminar de que aquela figura "romanceada" teria mantido todos os valores (que o filme acabara de ensinar) durante os oito anos de mandato. Imagine o que Dona Lindú pensaria se visse seu filho defendendo mensaleiros, abraçando Collor, mancomunando-se com Sarney e toda a alcateia do PMDB...
Mas, como era de se esperar, o problema de O filho do Brasil foi muito além das salas de exibição e dos cadernos e sites de cultura. Quando se tem um líder popular no poder, as reações vão da mais profunda idolatria ao ódio mais rancoroso. De um lado, a classe média ressentida, que se recusa a aceitar o ex-torneiro mecânico no poder. Atacam Lula pelo fato dele não ter estudado e defendem políticos com respeitáveis títulos de doutores (mesmo que seus currículos acadêmicos sejam tão extensos quanto suas fichas criminais). O ódio chega a tal ponto que, se escorregarem numa casca de banana e caírem de bunda no chão, são capazes de colocar a culpa no Lula. Na impossibilidade de arrancá-lo as tripas e vê-lo empalado em praça pública, pegam carona em qualquer bobagem que o presidente fala (e olha que são muitas) para impichá-lo moralmente. Com o filme, encontraram mais uma via para tentar converter seus interlocutores ao antilulismo fanático e oportunista.
Do outro lado, os pitbulls da esquerda militante. Empenham-se ― com todo o ódio ― na defesa cega e aguerrida de seu deus. Se já ficavam contrariados em ver uma simples charge no jornal, imagine o que acontece com alguém que resolver criticar o filme do "chefe". Qualquer crítica ou manifestação contrária pode (e deve) ser patrulhada. É aí que aparecem as muletas mais comuns do exército chapa-branca: "preconceito", "mídia", "elitista", "facista" (eles escrevem errado mesmo), "golpista", "direita"... Portanto, cuidado: se os pitbulls estiverem sem suas focinheiras, é bom que você já tenha tomado a sua dose da vacina contra a raiva...
A política, da maneira como é vista no Brasil, mostra uma paupérrima gama de cores: ou é preto ou é branco. Não existem tons de cinza em nossa palheta. O compromisso partidário não permite ser a favor do Pro-Uni e, ao mesmo tempo, contra o aparelhamento estatal. É também proibido criticar a política de juros do Banco Central e, ao mesmo tempo, reconhecer os feitos do Bolsa Família. A discussão sobre as cotas raciais nas universidades, a política externa no caso Honduras e no caso Cesare Battisti... Tudo, absolutamente tudo no Brasil é discutido com uma cartilha ideológica ou partidária debaixo do braço. Nem o STF escapa. Muitos não se dão nem ao trabalho de refletir o que está escrito nessas cartilhas, apenas regurgitam tudo o que ali está, de maneira absolutamente acrítica. Aqui, ou se é radicalmente contra ou se é colericamente a favor. De modo personalista e apaixonado, deixamos de reconhecer erros e acertos, para defendermos as resoluções mais descabidas, tudo em nome de identificações meramente pessoais. Esse governo não é a soma de todos os medos, como muitos querem acreditar (as diferenças entre Lula e Hugo Chavez são abissais), mas também está muito longe de ser essa maravilha que os adeptos do discurso do "nunca antes nesse país" fazem parecer.
Ambas as frentes (contra e a favor), infiltradas em blogs políticos pretensamente "independentes" e/ou "imparciais", levam a defesa de suas concepções políticas às últimas consequências. O achincalhamento, a difamação, a intolerância e a perseguição implacável de seus "adversários" mostram do que é feita a arte do extremismo político. Num momento em que se tem uma eleição presidencial à frente e que Lula cumpre o seu último ano de mandato, o filme traz à tona os piores sentimentos e preconceitos daqueles que encaram o debate político como uma pancadaria entre torcidas num jogo de futebol. Além de colocar a internet em estado de sítio, o filme retoca a já pesada maquiagem publicitária do presidente, visando a aprovação máxima, a popularidade inatingível, a unanimidade ― uma contradição para um país que se pretende democrático. No país das novelas, pode funcionar como enredo de horário nobre, mas ao romancear a trajetória de um líder político, insinua o culto à personalidade, remodelando-o para o consumo, como uma figura mítica, incorruptível e magnânima. Quem acompanha (mesmo que à distância) o noticiário de Brasília, vê um Lula muito diferente. Assim, O filho do Brasil conseguiu pecar no timing do lançamento, desconstruir um grande roteiro (que já estava escrito) e ainda jogar no lixo a chance de ser tanto rentável comercialmente, quanto elegante no trato com a coisa pública. Uma pena.
Bom, fim de mais um clássico. As torcidas já se armam para mais uma guerra. O pau promete quebrar feio dessa vez...
Quem já ouviu o ditado da monarquia? Ao rei e a seus amigos, mordomias e prata fina; e aos inimigos do rei calabouço e guilhotina! Estou me referindo falta de consciência e originalidade de quem teve a ideia de, nas atuais circunstâncias, escrever livro e fazer filme sobre Lula! Pois se não tem verbas para saúde, educação, segurança, nem para dar aumento digno prometido aos aposentados, como tem para fazer filmes e publicar livros? Eu sou escritor, e eu e muitos outros escritores conhecemos as dificuldades de publicar ou ter apoio cultural neste país de demagogos! Agora querem nos enfiar goela a baixo uma baboseira sem sentido, de quem disse publicamente que não gosta de ler? Poupem o povo! O filme fará o maior sucesso, se aumentarem a renda da cesta básica, ou criarem os empregos prometidos, pois sem trabalho e, com este valor da cesta básica, não dá para os eleitores do Lula irem ao cinema nem comprarem o livro. Vamos ser realistas!
Não sou cineasta, mas a trajetória de Lula sempre me inspirou a ideia de um filme. Eu me perguntava: será que ninguém vai pensar nisso? Bom, o Fábio Barreto pensou. Ponto para ele. Quero muito assistir, ainda não tive tempo. Quanto às questões ideológicas, ora, convenhamos, até uma carta que se escreve a um amigo tem suas tendências e escolhas temáticas. A imparcialidade não existe. Você, como jornalista, sabe disso. Ela é um ideal inalcançável. Autores, editores e cineastas têm suas subjetividades e licenças para criar. Lembro do filme "O que é isso companheiro" - quanta polêmica, meu Deus! E é um bom filme. O de Lula ainda não vi, não posso opinar. Resta-me, então, ficar com a sua opinião. Gostei do artigo.
Endosso totalmente o comentário do leitor Sr. Janciron. Também eu não resisti ao ser convidado a participar da Promoção, lançada aqui no Digestivo, do livro mistificador do Lula, ocasião em que destilei meu modesto antídoto contra certos intelectuais e empresários que incompreensivelmente se deixam levar por essa onda demolidora das mais sagradas tradições e instituições nacionais. Tomara que este ciclo da história no Brasil comece, logo, a ter fim, não sem a contribuição dos muitos brasileiros de bom senso que existem, espalhados por todos os cantos (neste Digestivo, inclusive), graças a Deus! Vamos ser realistas!
Reclama-se que as pessoas vão logo polarizar para o bem ou para o mal a respeito do filme, de acordo com suas posições partidárias. Se alguém é partidário, só pode opinar tomando partido, senão, ele seria imparcial. Agora, a crítica à polarização é inócua. Não atinge os parciais, porque, se eles se achassem parciais, não o seriam. Se não produz efeito nas pessoas que pensam parcialmente, menos ainda a crítica incide nos imparciais. Indivíduo de visão não precisa ser avisado da existência de barricadas parciais, porque ele só conseguiu se tornar imparcial após ter consciência da parcialidade. Homem honesto nunca pensa de forma partidária. A verdade não é propriedade de um partido, como não é de um homem. Às vezes, está com um partido, às vezes com outro (ou com nenhum deles). Um homem honesto é sempre apartidário, porque não quer apoiar uma mentira, quando o partido estiver errado. A essência da arte não é ver a verdade, mas as perspectivas em que se enxerga a realidade. A arte nunca...
... nunca ensinou a verdade, mas a verdade da perspectivação, isto é, o respeito a todas as opiniões e/ou a relativização da opinião própria. A política, por seu turno, fala de verdades absolutas e, portanto, mente, porque a política é a arte do possível. Se a política mente, a arte só pode encontrar verdade em falar de políticos se apontar seus gestos e decisões refratados em pontos de vista. E mais nada. Quanto mais um artista torna absoluta a atitude de um político, mais o artista mente. Alguns sujeitos que têm a arte por ofício mentem, porque a levaram a falar de verdades absolutas, enquanto outros tantos afirmam em suas obras que a verdade não passa de perspectiva. Dois casos de artistas, dois políticos enrustidos.