Desde os tempos de Xou da Xuxa ou Programa do Gugu até os estúdios atuais da Record ― onde Rodrigo Faro é uma espécie de dublê do Gugu ―, sempre as competições se dão entre Homens x Mulheres, Eles x Elas, Meninos x Meninas. Essa dicotomia faz parte do imaginário contemporâneo mesmo depois das conquistas femininas do século XX (ou talvez por causa delas), e está presente dos almoços em família às redações de vestibular. Não poderia ser diferente na literatura.
Eu e Você, Você e Eu (Record, 2009, 144 págs.), de Martha Mendonça e Nelito Fernandes, é mais um romance que explora essa dicotomia, mas de uma forma curiosa: temos uma história com dois narradores, e cada narrador é construído por um autor diferente. Marcelo, o narrador-personagem de Nelito Fernandes, começa como um jovem, promissor e ambicioso advogado de família. Mariana, a narradora-personagem de Martha, começa como uma jovem, bonita e independente estudante de psicologia. Ex-colegas de colégio, quando se reencontram rola uma atração, e daí surge um relacionamento. E, claro, as dúvidas: o que Marcelo pode fazer? Convidar Mariana para jantar ou ir a um motel? Decidir ou pedir que ela decida? Nessas horas, uma frase fora do lugar pode pôr fim a qualquer clima que esteja surgindo. E, mais do que isso, é quase impossível para um saber o que se passa na cabeça do outro:
"Eu sugeri outro lugar porque o restaurante estava um pouco cheio, tinha fila na porta, e eu detesto esperar de pé pra comer, parece coisa de gado indo pro pasto. Mas ela aceitou assim de pronto, será que está pensando em motel? Sim, porque uma coisa é o sujeito perguntar 'Vamos pra outro lugar?', a outra é dizer 'Vamos a outro restaurante?'. Se ela estiver realmente pensando que meu convite foi pra trepar, vai me achar um banana. Sinuca, Marcelo. Como saio dessa? Bom, deixá-la decidir é o melhor. 'Onde você quer ir?', perguntei. Pronto, a bola está com ela.
Onde eu quero ir? Mas será que ele está perguntando em que restaurante eu quero ir, em que motel eu quero ir ou se quero ir ao restaurante ou ao motel? Ou será que ele quer mesmo é que eu decida o nosso destino? Esperto. Mas não vou devolver a bola, não. 'Dizem que no Vip's a comida é boa e a vista é linda.' Ele sorriu e pegou o retorno para a avenida Niemeyer.
Gostei da resposta direta da Mariana. Uma das coisas que eu mais odeio em mulher é essa história de fazer joguinhos. Quer dar, mas prefere ficar cheia de rodeios. Quer uma coisa, diz outra. A gente não tem como adivinhar tudo, pô.
Ai, será que fiz mal? Será que ele tá me achando uma vagabunda??"
E assim vai, passando pelas várias fases do relacionamento, a primeira briga, o dia de conhecer a família de um, a família de outro, a decisão sobre o casamento, o dia do casamento, a primeira crise, a separação, a educação do filho em meio à separação, a reaproximação... Só não vou contar o final, até porque, segundo o próprio livro, todas as histórias são iguais.
É nesse ponto, aliás, que está a maior fraqueza do romance. Pela temática universal e pela abordagem coloquial e leve dos autores, a leitura flui maravilhosamente e nos faz dar boas gargalhadas, mas o texto ganharia em profundidade caso se livrasse de alguns estereótipos, como o advogado bem-sucedido e comedor, a psicóloga de família que escreve livros de autoajuda, o homem que trabalha demais e não dá atenção à mulher, a lua de mel em Paris. Porque todos os relacionamentos passam por fases, mas nenhum relacionamento é igual ao outro. Pelo simples motivo de que as pessoas não são iguais às outras, as condições não são iguais, os resultados não são iguais. E embora o livro conte especificamente a história de Marcelo e Mariana, em alguns trechos cai na tentação de generalizar para que o leitor se aproxime mais da história do casal, ame exageradamente como eles, transe enlouquecidamente como eles e sofra ensadecidamente como eles.
Talvez por trás dessa impossibilidade de generalizar esteja também a impossibilidade de dividirmos o mundo entre homens e mulheres, como fazia o programa da Xuxa e faz os domingos da Record. Isso pode render algumas risadas, vender livros, transformar filmes em sucessos de bilheteria ― Se eu fosse você talvez seja o exemplo mais recente ―, mas encerra um reducionismo inaceitável nos dias de hoje, pois fosse Marcelo um jovem artista ou professor, provavelmente sua visão de mundo e sua expectativa em relação às mulheres fosse completamente diferente; fosse Mariana filha de um rico industrial ou neta da faxineira do rapaz, certamente sua reação diante do outro seria completamente diferente. Ou seja, não é por ser homem que Marcelo pensa e age daquela forma, não é por ser mulher que Mariana pensa e reage daquela maneira.
O leitor dirá que a estratégia do narrador duplo funciona muito bem, e é verdade, mas não necessariamente pela diferença entre homens e mulheres, mas pela diferença entre as personalidades. Duas mulheres pensariam de forma diferente e dariam resposta diferente a pergunta de Marcelo: "Onde você quer ir?". Possivelmente muitas diriam o nome de um belo restaurante, mesmo querendo ir para um motel, outras fariam o contrário, algumas fariam questão que ele decidisse e há aquelas que agarrariam o rapaz ali mesmo no carro.
Na epígrafe do livro há uma citação de Cenas de um casamento, de Ingmar Bergman, que diz que homens e mulheres não falam a mesma língua. Mas se pensarmos um pouco parece é que as pessoas em geral parecem estar falando línguas distintas. Pais e filhos, professores e alunos, professores e diretores, patrões e empregados, irmãos, todos têm problemas sérios de comunicação em suas relações familiares, e talvez a maior dificuldade seja se colocar no lugar do outro, tentar compreender as respostas e reações do outro em vez de julgá-las ou defini-las com padrões.
E nesse ponto, aliás, está um grande mérito do livro, pois ao termos as duas vozes com a mesma importância e intensidade, colocamo-nos no lugar de um e outro, percebemos os reflexos das atitudes de um na vida do outro, e aí não importa se a dicotomia em questão é homem e mulher, pai e filho ou patrão e empregado, importa é que precisamos, cada vez mais, nos preocupar com o outro.
Que análise bacana, Spalding. Concordo plenamente contigo. Antes de me casar, fiz um curso para noivos e a ideia apresentada foi exatamente essa - a de que somos seres individuais e únicos, moldados pelas experiências da vida. É interessante ver como o casamento faz uma mistura de algumas coisas. Outras permanecem iguais para sempre. Isso pode gerar conflitos ou fortalecer a união, e a cumplicidade, conforme a abertura e a maturidade de cada um - o que também depende das experiências anteriores... Viver é mesmo uma arte! Viver junto, é mais que isso - é uma en-ge-nha-ria.