Duas noites, dois momentos culturais | Ricardo de Mattos | Digestivo Cultural

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COLUNAS

Segunda-feira, 22/3/2010
Duas noites, dois momentos culturais
Ricardo de Mattos
+ de 6600 Acessos

"Convida um sábio para jantar; irá perturbar com um estranho silêncio ou com molestas questiúnculas." (Erasmus de Rotterdam)

Dois livros foram escritos, cada um sobre uma noite específica no calendário e relevante para a cultura europeia em dois momentos distintos. Uma noite no palácio da razão (Record, 2007, 336 págs.) nasceu da investigação do jornalista James T. Gaines em torno do significado do encontro de Johann Sebastian Bach e o rei Frederico II, da Prússia, na noite de sete de maio de 1747. Já o escritor Richard Davenport-Hines preferiu a noite de dezoito de maio de 1922, quando os escritores Marcel Proust e James Joyce, o pintor Pablo Picasso, o compositor Igor Stravinsky e o empresário teatral Serge Diaghilev foram reunidos para jantar num hotel parisiense. De sua pesquisa originou-se Uma noite no Majestic (Record, 2007, 350 págs.). Duas noites essencialmente diferentes? Não... A efervescência cultural é uma constante da humanidade, e os dois autores conseguiram selecionar momentos representativos dos períodos históricos evocados, cada qual com seu substrato ideológico e suas figuras de proa. Tanto Bach quanto Stravinsky buscaram na música a melhor expressão de seus propósitos, apesar dos recursos utilizados e dos ideais a que serviram. Dentro da mesma centúria Proust e Joyce deram ao mundo obras diversas, mas nenhum estudo cultural do século XX fica completo sem que ambas sejam abordadas. Em todo o caso é o Espírito trabalhando e colocando a Cultura em movimento.

Gaines dispôs seu trabalho em treze capítulos, oscilando o pêndulo narrativo entre o monarca e o compositor. Para ele, a noite setecentista representou o encontro do passado luterano germânico, na pessoa da última ― porém maior ― figura da música alemã antiga, com o Esclarecimento, versão alemã do Iluminismo, simbolizado pelo rei. Deu-se em Potsdam, ao saber o governante que o "velho Bach" acabara de chegar para visitar o filho Carl-Phillip-Emmanuel, então músico da corte prussiana. Embora fatigado, o idoso compositor foi chamado à presença real e obrigado a atendê-lo. Isto importou em percorrer o palácio, examinar e testar cada um dos quinze pianos de Frederico. Ao final, precisou improvisar e foi desafiado com tema dificílimo, que, posteriormente desenvolvido, originou a peça conhecida como Oferenda musical.


Frederico, o Grande

A noite mais próxima deu-se na França, nas dependências do hotel Majestic. Embora cinco os convidados mais célebres, Davenport-Hines escreveu com indisfarçável preferência por Proust, assim como anfitrião indelicado isola-se com seu convidado favorito e esquece os demais. Seu livro acaba sendo uma biografia de Proust, relegados os outros a comparecimentos incidentais. Não negamos o valor do texto em retratar o escritor francês e sua época ― sua Bela Época ―, porém pessoalmente elegemos Gaines, escolha refletida na fluência da leitura. Lançado há alguns anos, o relato do músico e poeta Robert Craft ― Stravinsky ― Crônica de uma amizade ― é apontado como mais abrangente e completo.

O mérito comum é lembrar a humanidade dos envolvidos todos, dessacralizando sem cair na vulgaridade. Quando têm voltados para si os holofotes da realidade, as pessoas acabam revelando menor encanto que o esperado. Todavia, o que deseja o observador iniciante? Que, por ser compositor, Stravinsky assoviasse em compassos elaborados? Que Proust tivesse uma epifania repentina e parasse a conversa para escrever um trecho de Em busca do tempo perdido? Ignoramos como se faz hoje em dia, mas os assim chamados "artistas" seguiam um plano, possuíam objetivos ideológicos e para sua transmissão buscavam a forma mais adequada. Por vezes, a impressão que fica é de que a estética era mais consequência que alvo principal. Para criar, Bach e Joyce precisaram recolher-se, isolar-se intimamente, senão socialmente. Lembrando Lacordaire, "é a solidão que inspira os poetas, cria os artistas e anima o gênio". Fora os exibicionistas, é mais fácil vivenciar o mesmo pasmo observado por Nietzsche: "não é raro encontrarmos por detrás dum sábio notável um homem medíocre, e muitas vezes por detrás de um artista medíocre ― um homem notável". Apesar da expectativa gerada, Davenport-Hines indica várias fontes testemunhando a sensaboria literária do jantar.


James Joyce

Voltemos ao livro de Gaines. Bach foi compositor. Fosse escritor ou pregador, teria escrito obras místicas ou pregado sermões inspiradíssimos, porém a música mundial perderia parcela de sua magnificência. Segundo o acadêmico Friedrich Smend, "as cantatas e paixões não pretendiam ser obras de música ou de arte em si mesmas, mas [objetivavam] continuar por seus próprios meios o trabalho de Lutero, a pregação da palavra e de nada mais senão a palavra". Como se vê, foi um engajado avant la lettre. Antes de ser músico, foi luterano ― o que explica a inadequação litúrgica da Grande Missa; antes de ser luterano, foi cristão. O cunho teológico de suas peças era fruto de profunda compreensão pessoal a respeito da mensagem de Cristo aliada à exigência profissional. Prova isso o exame de teologia enfrentado no concurso para o cargo de diretor musical da escola de São Tomás, em Leipzig. A composição era um trabalho objetivo, com regras a observar na mística e no pentagrama, e não desprovidos até de certo esoterismo. Quando um hino contivesse a palavra "Deus", os instrumentos deveriam tocar em uníssono, remetendo à unidade divina, e o trecho seria desenvolvido sempre num crescendo. Por isso, muito perderá o ouvinte si ouvir alguma obra sacra sem fazer-se acompanhar do libreto.

A fundamentação espiritual de Bach explica parte do conflito ocorrido quando de sua chamada ao palácio de Potsdam. Frederico buscou implantar em seu país o gosto francês pela arte, galante e já vinculado ao movimento iluminista. O que seria a "música iluminista"? Seria aquela que rejeitasse o sacro e fosse voltada principalmente ao divertimento da nobreza; que agradasse sem levar à introspecção.


Igor Stravinsky

Apresentando o "rei Frederico, o Grande", pode passar despercebido o homem ocupante do trono, o indivíduo repleto de conflitos e que padeceu muito sob o jugo de seu pai, Frederico Guilherme. Pode-se começar lembrando que este quase condenou aquele à morte após mantê-lo alguns meses na prisão, acusando-o de sedição mais teatral que séria. Coroado, não foi poupado do susto, por vezes amargo, próprio ao filho que se vê repetindo os atos criticados do pai. Frederico Guilherme sequestrava homens de elevada estatura para formar um exército de gigantes. Seu filho convidava intelectuais para sua corte. Todavia, diz Gaines que o "Iluminismo prosseguiu sem ele". A dedicação cultural parecia ser um desafio. Morto o velho rei e assumido o trono, a ânsia inicial arrefeceu e ele não teria fugido demais da cartilha paterna. Frederico era atormentado por sonhos angustiados, nos quais lembrava de buscar a aprovação de seu progenitor para tudo o que fazia. A chegada de Bach pode ter despertado algo em seu íntimo, visto a acolhida efusiva ceder ao desafio hostil do mestre mais admirado pela geração anterior.

175 anos e onze dias depois, o que caracterizou a noite pesquisada por Davenport-Hines foi a calmaria. O jantar foi promovido pelo empresário anglo-judeu Sidney Schiff, visando homenagear o empresário Serge Diaghilev. Sua companhia, os Ballets Russes, estreara o ballet Le Renard de Stravinsky, obra encomendada anos antes pela princesa Edmond de Polignac (sic). Embora homenageado, Diaghilev atuou também como mestre de cerimônias, aproveitando-se para reunir os artistas citados, todos presentes em Paris e na sua melhor forma. Estavam presentes também representantes da intelectualidade, como o crítico Clive Bell, cunhado de Virginia Woolf, e a nobreza francesa, totalizando cerca de quarenta pessoas. Segundo o autor, cada um deles tinha "aguda consciência uns dos outros, e plena curiosidade e respeito mútuos; mas prezavam acima de tudo suas próprias ideias e a evolução das próprias obras". Daí a expectativa gerada em relação ao encontro de Joyce e Proust, que acabou sendo um tiro com pólvora úmida para quem esperava chispas e para quem esperava a confraternização literária. Si houve algum mal-estar, foi gerado entre o escritor francês e Stravinsky. Proust dirige-se a ele elogiando alguns quartetos de Beethoven ouvidos recentemente. O russo guardou a impressão de afetação, de artificialismo, e afastou-se logo. O primeiro capítulo, enfim, acaba sendo a seção que mais fala sobre o jantar e os convidados.


Marcel Proust

Marcel Proust deixou o mundo seis meses depois. O autor detém-se em pontos nem sempre lembrados desta personalidade enfermiça, quiçá masoquista. Um deles é a origem judaica: católico por formação e convenção, nunca negou nem quis negar-se taxativamente judeu. Nunca o faria, sobretudo por sua mãe ser judia. Negar sua origem étnica seria renegá-la, o que não se poderia esperar de forma alguma dele. Observemos que, entre os judeus, é a maternidade que define a etnia. Curiosa também é a sua pouco explorada faceta como especulador financeiro matusquela. Não era um especialista, contava com orientações e dicas da nata do mundo financeiro, mas a escolha das empresas das quais comprava ações atendia a um critério pouco técnico: a sonoridade ou o exotismo do nome, circunstância mesma que lhe causava o deslumbre entre os nobres. Caso este humilde colunista fosse apresentado como Ricardo de Mattos seus sobrolhos sequer se moveriam. Contudo fosse apresentado como oriundo da família Scacchetti, seu rosto iluminar-se-ia indisfarçavelmente. Os nomes sonoros pareciam despertar-lha nostalgia de um passado talvez mais fantasiado que vivido.

Para ir além









Ricardo de Mattos
Taubaté, 22/3/2010

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