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Quarta-feira,
24/3/2010
Descobrindo David Goodis
Luiz Rebinski Junior
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Com certa frequência a literatura traz boas novas. De tempo em tempo dou de cara com determinados autores que não conhecia, me apaixono e entro com tudo na obra do escritor. Vou a sebos e livrarias, compro tudo que posso do autor e vou pra casa me entorpecer com a "descoberta". Isso aconteceu recentemente com Raymond Carver, Harry Kemelman e João Gilberto Noll.
Esse é um dos grandes baratos da literatura. Quando tudo parece monótono e repetitivo, de repente, sem ser avisado, você leva um soco no estômago. Um livro com quarenta, cinquenta anos te faz cair na real, te mostra como você é babaca por achar que não vai mais encontrar nada que te emocione e que faça você terminar logo suas atividades só pra voltar a um livro que ficou na metade. Isso é ótimo porque te deixa ciente da própria mediocridade e mostra a força da história da literatura. Mas também porque é um ótimo indício de que você ainda está vivo para a literatura, não se cansou dela e ainda se emociona, é capaz de se inebriar com um livro.
Isso tudo pra dizer que acabo de me apaixonar novamente. Desta vez por um autor norte-americano que fez fama escrevendo livrinhos noir sobre a decadência do trabalhador americano. David Goodis é o nome dele. Goodis ficou na sombra de nomes mais famosos do romance policial, como Raymond Chandler e Dashiel Hammett. Um lugar propício para um escritor que tinha como matéria-prima os vencidos que transitavam lentamente na escuridão dos portos, que se escondiam de seu destino na névoa viciante dos bares mais mal frequentados.
Na orelha de um de seus livros, Goodis revela como encarava a literatura: "No começo eu queria escrever de modo solene e só abordar os grandes problemas, mas logo aprendi que o problema mais importante era comer, então eu me conformei em escrever o que os editores queriam". E assim Goodis se tornou um escritor de revistas pulp, aqueles magazines baratos que faziam sucesso até a primeira metade do século XX nos Estados Unidos. Escrevia qualquer coisa que lhe rendesse dinheiro e assim se tornou, por um período, roteirista de Hollywood. Queria ser Hemingway, mas acabou tendo um fim mais parecido com o de Fitzgerald. Morreu em decorrência de ferimentos recebidos em uma briga de rua, aos 49 anos. Exatamente como os brigões e arruaceiros que engrossam o caldo de sua literatura.
Goodis escreveu contos e novelas, mas são os seus romances que lhe deram certa notoriedade. O mais conhecido deles, certamente, é Atire no pianista (L&PM, 2005, 224 págs.), que foi filmado por Truffaut em 1960. É, de longe, o filme mais experimental do mestre da Nouvelle Vague. Um filme muito parecido, por sinal, com a estreia de Godard, Acossado, que tem roteiro do próprio Truffaut. Em ambos os filmes a câmera corre rápido, há cortes abruptos e a narrativa não é linear. Truffaut, depois desse filme, nunca mais seria tão experimental no modo de filmar, deixou esse papel para o colega e, mais tarde, desafeto Godard.
No livro de Goodis, Eddie, um pianista de taverna, é envolvido em uma trama obscura quando resolve ajudar um irmão picareta a escapar de dois mafiosos. O livro começa com uma perseguição veloz e empolgante, com Turley, o irmão do pianista, sendo cassado como rato entre as caixas de cerveja do bar de Harriet, onde Eddie toca, pelos bandidões Morris e Feather.
Eddie, assim como vários outros personagens de Goodis, é um tipo de fracassado que já perdeu totalmente a esperança: tem um ar resignado que não lhe deixa fazer mais do que aquilo que já está acostumado. Não quer mais nada da vida, não espera compaixão, muito menos amor, de ninguém. Está plenamente satisfeito com sua condição, por pior que seja. Mas essa desesperança tem explicação. Eddie outrora era Edward Webster Lynn, um promissor concertista de Nova York que vê sua carreira desmoronar quando descobre que sua mulher, Teresa, vendeu o próprio corpo em troca de um contrato com um famoso agenciador de pianistas. A carreira de Edward deslancha com o contrato, mas sua vida acaba. A mulher, envergonhada com o que fez, comete suicídio. Edward então cai na vida, vira Eddie, o pianista de pocilgas, e tenta esquecer não só o passado, mas também o presente.
O mais incrível na literatura de Goodis é que ele consegue empreender uma linguagem poética mesmo sendo simples e bastante direto em seu texto, como no trecho em que narra o suicídio da mulher: "Edward fez meia-volta, atravessou a sala correndo, e entrou no dormitório. Teresa estava no parapeito da janela. Ele pulou para frente e tentou agarrá-la, mas nada havia para agarrar. Havia apenas o ar frio que entrava pela janela".
Goodis se utiliza do passado negro de Eddie para dar mais credibilidade ao estoicismo do personagem. Eddie é um homem acabado, que não pensa muito antes de tomar uma decisão. Qualquer coisa que lhe aconteça será algo "inevitável".
Goodis usou recurso parecido em outro romance. Em A garota de Cassidy (L&PM, 2006, 224 págs.), o personagem central, Jim Cassidy, é um ex-piloto de avião que desiste da profissão e torna-se estivador após se envolver em um acidente aéreo. Mesmo não sendo culpado pelo acidente, é atormentado pela consciência e resolve fugir. Os personagens de Goodis estão quase sempre em fuga. Seja do passado ou do presente. E o melhor paliativo que encontram é a bebida. Os livros de Goodis são altamente alcoólicos, o uísque verte das páginas como uma fonte de água mineral.
Goodis é daqueles autores que não te deixam em paz até que você se liberte por completo dele. Para isso, é preciso chegar à última linha do livro. Li A garota de Cassidy em meio a uma gripe forte, daquelas que te deixam anuviado. Quando largava o livro e adormecia, era comum sonhar com Cassidy. Via-o em sua fuga, imaginava-o bebendo no Lundy's Place e me sentia deprimido quando despertava. Não sei se estou supervalorizando Goodis, só sei que a literatura dele me pegou em cheio, me atordoou.
Quando se procura sobre Goodis, é comum encontrar textos que o relacionam com Bukowski. Esqueça! Não há nada de similar. Personagens beberrões encontramos em toda literatura, não só na americana. Os personagens de Goodis têm uma força diferente dos de Bukowski. Suas personalidades são mais rijas, são pessoas intransponíveis, mesmo que façam parte da ala dos vencidos, dos fracos. Os personagens de Bukowski são muito mais caricatos, nos convencem de outra forma.
As tramas de Goodis também não seguem a cartilha de autores clássicos do romance policial. A trama, em seus livros, é importante, claro, há sempre aquele suspense pairando no ar, mas não é nunca um quebra-cabeça. A trama está sempre a serviço do personagem, nunca o contrário. Quando se termina um livro de Goodis, lembramos de Cassidy, Eddie ou Hart, o personagem de Sexta-feira negra. A história vem acoplada ao personagem. Por isso que o adjetivo "noir" é muito mais apropriado do que o termo "policial" quando se fala em David Goodis. As tramas do escritor são mais muito mais negras do que policialescas.
David Goodis escreveu dezenove livros. Apenas quatro foram publicados por aqui (Atire no pianista, A lua na sarjeta, A garota de Cassidy e Sexta-feira negra), todos pela L&PM. Em um país em que Henry Chinaski se deu tão bem, os beberrões malditos de Goodis certamente mereciam melhor sorte.
Para ir além
Luiz Rebinski Junior
Curitiba,
24/3/2010
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