Num tempo de se discutir educação, aquilo que merece ser ensinado na escola, o que é o conhecimento e como ele pode ser alcançado, eu admiro estas paredes e estes arcos de inspiração greco-romana, esta austeridade escolástica que se esfacela nas propagandas coloridas dos bebedouros. Inclino-me diante das janelas de madeira sólida, toco o puxador de metal trabalhado e, ao apoiar os cotovelos num ato de contemplação, o viaduto Santa Ifigênia se levanta como uma dobradura de um livro que se abre. Há poucos minutos o atravessava e podia observar outros espectadores posicionados onde estou agora, com o conforto da distância que faz dos rostos uma massa indistinta, sem o desafio do tête-à-tête.
As salas de aula, de leitura e os parlatórios são ocupados pelas obras da exposição Arte e religiosidade. É a primeira vez que espaços do Mosteiro e do Colégio de São Bento recebem uma exposição de arte contemporânea. A arte religiosa, abstrata, longe de ser um contraponto complementa os cômodos sem apelar para o óbvio, no entanto se torna obscura diante dos detalhes arquitetônicos que, estes sim, tomam conta de sua própria dimensão.
Subo as escadas apoiando-me no corrimão de madeira gasto, a padronagem geométria do chão vai se alterando a passos largos. A sala de reuniões, de cuja sacada os papas saúdam o povaréu, está aberta à visitação. Flores e frutas incrustadas no teto dão o tom tropical-abrasileirado da decoração. Há uma mesa grande, canapés e cadeiras de madeira estofadas, um piano antigo recostado na parede. O Martinelli nos espia por detrás dos outros prédios do Largo de São Bento, enquanto o Banespa oscila magestosamente a bandeira do Estado de São Paulo. Dali o centro parece uma criança inofensiva, carinhosa até.
Os corredores claros com pé-direito alto convidam meus sentidos a rememorar quantos sóis como o deste sábado matinal já não bateram contra suas paredes e clarearam a passagem dos estudantes e professores, e agora dos meros mortais há muito alfabetizados. Que sensação incerta, entre o vivido e o não vivido, entre o querido e o querer propicia um ambiente escolar ― mesmo que morto, repleto de visitantes curiosos.
A experiência de ter cursado colégios religiosos por vários anos, ouso dizer, propiciou um humanismo e um senso ritualístico imprescindíveis para mim. Seria naquele momento da infância, o da primeira formação, ou nunca mais. As leves arcadas do Liceu Coração de Jesus, sua espetacular igreja (em que eu não me casaria) e todos os mistérios que rondavam a construção centenária e seus padres voltam à tona, como não poderia deixar de ser. Quando se abrem as portas, o tempo já não tem mais aquele viço de pega-pega; preguiçoso, ele se refastela numa busca cega pelos caminhos que o esquecimento confundiu.
Na cantina do Jacaré, a coreana Hanna me disse que não queria rezar. Pois não rezasse. A doçura do padre Milton, o melhor diretor de colégio que já conheci, que passava por todas as salas e caminhava pelas alamedas arborizadas conversando com os alunos. O museu e os bichos empalhados, recantos de descoberta, os diversos pátios e imagens onipresentes de Nossa Senhora e dos santos, o refúgio de orações e contemplação voluntária na terna capelinha subterrânea. Dali haveria uma entrada para o suposto cemitério dos padres? Ao lado, a escadaria de metal que leva ao sino dessa, que é uma das torres mais belas e célebres da cidade, aos poucos se transforma num treme-treme com degraus de madeira. Especulação?
E agora tomba sobre mim um céu de estrelas em descabida geometria: a capela do Colégio de São Bento. Sedes sapientiae Aberta a quem quiser visitá-la, ela perde um pouco de seu ar restrito. Mater divinae gratiae A profusão de vitrais cria tortuosas histórias, enclausura em vez de arejar os horizontes. Simbolismos tomam conta dos sentidos. Rosa mystica Uma serpente abraça o mundo, o cordeiro repousa com olhos meigos, o voo do Espírito Santo. Logo mais estarei de volta aos viadutos do centro da cidade, mergulhada na estiagem, o sagrado coração em chamas. Regina pacis
Desço as escadas e mais uma vez percorro os corredores iluminados. Em minha despedida por esta escola que não frequentei e dificilmente visitarei mais uma vez, retorno aos parlatórios e me encontro refletida no espelho da chapeleira. O círculo que me entorna traça leve, mas obtusa deformidade em meu rosto. Um dia estamos nestes corredores e pátios como alunos, preocupados e imersos em provas, papéis e especulações de um pequeno mundo (não são assim também os outros, os da maioridade?), noutros passamos por lá como eleitores, visitantes, ou para acompanhar a ruína de nossa ausência.
A forma como acreditamos em educação nada tem a haver com as diabruras estabelecidas pela juventude, que não respeitam pais, professores, governos e têm a lei de seu lado. Hoje educação é destruir o patrimônio público, é não ser repreendido. E tudo está conforme o estatuto da criança e do adolescente. Uma esculhambação.