Passa por este caminho já percorrido como se fora pela primeira vez. A primeira vez que pisou na terra do norte. Lembra do tom dourado de trigo dos prédios se descortinando como se fossem moedas de ouro lançadas para o alto. Existem apenas duas opções ― cara ou coroa. Assim também funciona com as passagens: ou se tem a chave, o segredo, ou elas se mantêm impassíveis, impossíveis de serem desvendadas. Uma cidade tem muitas portas, mas a chave só abrirá, ou não, a tranca de uma delas. A chave tem o contorno exato para uma reentrância, e esta é comprida, acobreada, quase entra nos dedos sua arruela. Agora respira este ar desconhecido. É como se respirasse o ar do nascimento, pois reabre os pulmões para uma nova experiência. O ambiente também é desconhecido, por isso vai tateando no escuro, ainda longe de entender o caminho prestes a ser percorrido. Aporta no velho novo mundo.
Água. A água límpida no espelho onde brincam crianças, caminham namorados, flutua o vapor no vento de verão. O espelho d'água está entornado pelo rio, pela praça de arquitetura colonial exuberante. Ao fundo, a torre da igreja, flecha empunhada contra o céu. Debaixo do espelho, o líquido escoa, para depois retornar murmurante. O gradeado subterrâneo esconde a verdade dos esgotos. Um Hércules de bronze em dezenas de pedaços é testemunha da colonização romana. Aqui continua a ser um jogo de montar peças: onde os pontos devem se encaixar para o encontro da forma ideal? A resposta está no museu da cidade, com a estátua de braços abertos, o peito recosturado, nada além do tronco pois metade do corpo se perdera. Um objeto distante de sua origem se recobre de mistério e parece ter perdido sua utilidade, como a chave dependurada na grade, quase despercebida. Fora de contexto, ela cria um ruído no ambiente, embora seja de uma simplicidade rasa, perfeitamente possível de ser compreendida. Ou mesmo outra peça, a chave comprida que encontra na mesa, pega entre as mãos e lê a identificação "grade da entrada".
Na igreja próxima ao espelho d'água há uma porta muito grande e antiga, cuja chave não a abre. A porta leva ao subterrâneo da igreja, frio, úmido, onde vivem caveiras sorridentes. Sobe as escadas de pedra escura e se depara com outra escada, clara, retorcida e estreita, que, desta vez, leva à torre da igreja. O ar adentra pelos poucos orifícios vertiginosos, por onde vislumbra a paisagem apequenar-se, e ainda que seja impossível passar por um deles, o corpo, magnetizado, insiste na possibilidade de lançar-se abaixo. Sobe os degraus altos com o mesmo vigor de outrem, gasta mais um pouco a superfície aparentemente dura, pois foi com a insistência de muitos que ela foi sendo moldada, deforma-a com seus pés. Sente-se preso ao jogo oprimente da construção, mas que o mantém ereto e em segurança nesta subida em que o corpo humano se encaixa à torre, da mesma forma que a chave se acopla à anatomia do segredo.
Do alto da sacada vê-se a cidade, amarela, disposta em fracionamentos ruidosos de vida, como utensílios em uma bandeja a tilintar; ouve-se tudo ao mesmo tempo, e então não há mais distinção entre as partes neste todo compacto, pois todas as opções engolfam-se nele, aleph; veem-se portas gigantes, sem maçanetas nem fechaduras, por onde o povaréu passa e repassa sem se dar conta do ato cotidiano de desvendar, de ter o segredo decomposto, pronto em suas mãos, o que lhes dá o direito de caminhar automaticamente, sem juntar as peças, sem a permissão da abertura ou o chaveamento. Avista um portão digno de rei ― é o do jardim público, com grades frescas em azul cujo topo recebe lanças banhadas a ouro. Onde está seu fecho? A chave, nua, por si mesma, servirá a qual propósito?
Mais distante ainda, o parque se espraia em uma paisagem esverdeada e compacta: a perspectiva infinita das vinhas, exército pacífico de Baco. Delimitando o início difuso que separa a cidade da corveia, há um outro gradeado alto, negro, portentoso, a partir de onde se avista a continuidade do vinhedo. Em cada ramo das fileiras recurvadas sobre si mesmas, grandes roseiras, eretas sentinelas, exibindo suas flores carnudas, escarlates, suas espinhas, vicejam a vida resguardada. Olha pelo buraco da fechadura do portão deste gradeado e lá vê mais um gradeado, onde há um outro portão, cuja chave o abre e leva ao caminho das estrelas.
"Fora de contexto, ela cria um ruído no ambiente, embora seja de uma simplicidade rasa, perfeitamente possível de ser compreendida." Adorei este trecho...
Gostei desse trecho: "A chave tem o contorno exato para uma reentrância, e esta é comprida, acobreada, quase entra nos dedos sua aruela. Agora respira este ar desconhecido. É como se respirasse o ar do nascimento, pois reabre os pulmões para uma nova experiência". Lindo!