Não consigo imaginar a discussão sobre a influência de um gadget como o iPad no mercado de tecnologia sem pensar na reserva de mercado imposta pelo Brasil ao ramo da informática na década de 80. Enquanto falsificávamos softwares e hardwares para garantir o funcionamento da indústria, fingindo dar de ombros para a importância das importações desse setor na economia, o mundo todo se preparava para o salto que seria dado na década seguinte, com o surgimento da internet. E nós ficamos para trás, naturalmente. Vinte anos depois, continuamos copiando, desta vez, modelos de negócio na internet, com a mesma voracidade e cara de pau da década de 80. Um hábito peculiar, não?
É impossível imaginar a internet brasileira sem a quebra da reserva de mercado. E é impossível imaginar a quebra da reserva de mercado através da condição atual da internet brasileira. Parece uma ideia complicada, mas é tão simples como nosso tapa olho de pirata, que vestimos na época em que tivemos a pachorra de clonar até mesmo o Billy Idol. E ele é tão ruim quanto os blogs da imprensa marrom, dos caçadores de publicidade e dos alpinistas de buscas no Google. A resposta desta charada de mau gosto é que a internet brasileira é tão improdutiva quanto um poço de petróleo perfurado no meio do estado de São Paulo: enquanto o mundo se prepara para mudar gradativamente para utilização de energias renováveis, continuamos procurando petróleo, de forma incessante, e justamente onde ele não existe.
Discute-se no Brasil a interiorização da rede de banda larga através do renascimento de uma estatal falida. Nos EUA, inesgotável fonte criadora da internet, a discussão sobre a expansão da internet não passa mais pelos cabos, mas pela consolidação das redes Wi-Fi e 3G e pela implementação das redes 4G, que suportariam a transmissão de até 150 Mbps. Existem divergências sobre a eficiência da rede de banda larga por cabo nos EUA, a maioria delas versando sobre a obsolescência da rede, construída de forma prematura e que não suportaria uma mudança em curto prazo, mas que poderia ser suprida pela utilização dessas tecnologias wireless. Ninguém duvida na escolha dessa solução.
A prevalência do sistema de transmissão do sinal wireless, nos EUA, está ligada não apenas à dificuldade na reestruturação da rede de cabos, mas à própria forma como a internet é acessada. Computadores desktops são substituídos por notebooks. Celulares acessam sites e enviam e-mails. Tablets são utilizados como ferramentas produtivas. O iPad nasce prometendo revolucionar toda a ideia de mobilidade no acesso, sendo o primeiro computador pessoal capaz de unir a produtividade de um desktop e a mobilidade de um celular. Alguém poderia procurar o paradeiro daqueles cabos?
Mas o cabo-de-guerra continua abaixo do Equador. Nosso atraso na determinação de políticas públicas transparentes e lógicas na área de tecnologia e telecomunicações impede até mesmo o lançamento do iPad por aqui. A Apple cogita produzir seus produtos no Brasil, para reduzir os custos com a nossa carga tributária, mas não faz ideia do imbróglio jurídico que a espera na construção das fábricas, na contratação de pessoal e na distribuição de seus produtos. Estas questões constituem gargalos tão estreitos que não permitem a passagem de um iPod nano.
Desta forma, a discussão sobre a influência de um gadget como o iPad passa distante de nosso cotidiano. Considerando esta barreira geográfica intransponível, causada pela nossa incompetência histórica, minhas considerações sobre o aparelho que pretende salvar Clark Kents e Peter Parkers não passam de impressões e, admito, bastante tacanhas. Aí vão:
Design: é um iPhone grande. Bonito, mas não passa de um iPhone grande. Não inova em absolutamente nada.
Hardware: é extremamente limitado. Digitar na tela é algo que só funciona para fãs xiitas da Apple ou para quem nunca passou do 140 caracteres em um texto.
Software: não é multitarefa e, mesmo com a atualização do sistema, prometida pela Apple, a navegação entre um programa e outro não é simultânea. Desculpe, Steve Jobs, mas eu sou um sujeito bagunçado e quero meu Twitter ao lado do editor de texto e do meu navegador, todos funcionando ao mesmo tempo, na mesma tela. Também não suporta Flash, fato que ninguém conseguiu explicar de forma convincente, nem mesmo Steve Jobs.
Preço: caro, pois não tem a funcionalidade que promete ter.
O iPad é um artigo de luxo. Serve para agradar aos fãs de gadgets que vestem a camisa da Apple, navegam sem se preocupar com os buracos em branco deixados na tela pela ausência da reprodução de extensões em Flash e que são viciados em aplicativos inúteis. Ele não vai salvar os jornais e revistas porque seu mercado consumidor é formado basicamente por pessoas que querem assistir ao Keyboard Cat limando celebridades no YouTube e que nunca pagaram por conteúdo nenhum. Ainda que eles adquiram milhões de apps no iTunes, não estão dispostos a se comprometer a pagar caro ― o equivalente ao preço da assinatura do sinal da rede 3G, ressalte-se ―, todo mês, para acessar informações que estão disponíveis de graça.
Agora, posso retornar para a minha caverna e terminar minha declaração de imposto de renda em paz, senão também ficarei preso no gargalo. E sem um iPad.
Ótimas observações. Realmente, também me sinto escrevendo de uma caverna, por aqui. No Brasil, pagamos o dobro para ter a metade, no que diz respeito à tecnologia. Nossa tnternet engatinha, cada dia mais dominada pelas mesmas forças hegemônicas que controlam a comunicação "tradicional". E o iPad? Tenho impressão que não serve para absolutamente nada, especialmente aqui, na caverna.