Ivo Rodrigues é praticamente desconhecido no Brasil. Mas em Curitiba e no Paraná o vocalista da banda Blindagem era um ícone. Sua banda, aliás, era uma das precursoras do rock curitibano, primeiro como A Chave para, uma década depois, se transformar em Blindagem. A banda ficou conhecida nos anos 1980, mas não tinha nada a ver com o chamado BRock, a famigerada expressão inventada pelo jornalista Arthur Dapieve.
O primeiro disco da banda, chamado simplesmente de Blindagem, de 1981, tem uma porrada de músicas escritas por Paulo Leminski em parceira com Ivo Rodrigues. O disco, ao longo dos anos, se tornou um clássico local - e com razão. A música que abre o álbum se chama "Oração de suicida" e foi composta por Paulo Leminski e seu irmão Pedro, que em 1986 se enforcou em uma pensão em um bairro boêmio da cidade. A música, como quase todas do disco, é linda, um poema sobre desilusão e natureza. "Vejo nos teus olhos/ tão profundo/ as durezas que este mundo/ te deu pra carregar/ vejo também/ que sentes que tem/ amor para dar/ perdi-me na vida/ achei-me no sonho/ a vida que levo/ não é a que quero/ não quero mais nada..."
O disco é curtinho, tem apenas dez músicas, mas todas muito poderosas. Na capa do álbum pode-se ver um mochileiro no Pico do Marumbi, na serra do mar paranaense, ainda hoje destino certeiro de bichos-grilo em busca de sossego e birita ao ar livre. Nessas montanhas Leminski acampava com o irmão e se entorpecia de vodca. Esse é o clima que cerca o disco. Longe das guitarrinhas estridentes dos seus parceiros de geração, o Blindagem parecia ter um pé nos anos 1970 e outro no barro de algum sítio próximo de Curitiba quando gravou o disco. Não há muitos solos de guitarra, que dão lugar a um som mais acústico, recheado com violões, violas e gaitas. Almir Sater toca viola de dez cordas em "Berço de Deus", outra canção de louvação à natureza. "Não posso ver" e "Cheiro do mato" são verdadeiras odes ao naturismo e à pureza de espírito, sem que sejam inocentes ou pueris.
Talvez por conta desse deslocamento, o Blindagem tenha voltado rapidinho de seu passeio pelo Sudeste. O disco foi lançado pela Continental, mas não emplacou. Ivo e a trupe voltaram pra casa para comer pinhão. E fizeram bem, afinal de contas ainda não nasceu uma banda mais curitibana do que o Blindagem. É como o Ira! em São Paulo, mais ou menos. Isso porque a cidade tem bons representantes, como o Charme Chulo e a Relespública (que acaba de acabar), bandas que traduzem bem a atmosfera local. Mas o Blindagem era uma espécie de instituição que, mesmo sem lançar um disco de inéditas desde 1997, há treze anos, continuava saltitante pelos palcos do Paraná.
No interior do Estado, a banda tinha fãs que a recebiam com tapete vermelho e muita cerveja gelada, sempre. Qualquer show deles pelo interior tinha casa cheia. Era como encontrar velhos amigos depois de tempos. Talvez por isso a banda não se arriscasse muito fora de seus domínios. Pra quê? Falavam pra quem os entendiam, eram reverenciados e continuavam fazendo somente o que queriam. Eis o ideal hippie levado às últimas consequências. Alguns integrantes tinham outros empregos, se dedicavam paralelamente a outros projetos, pois o rock que faziam era apenas uma diversão.
Menos Ivo, que era o rock em seu estado bruto. Em uma noite de terça ou quarta-feira, podia-se encontrar Ivo cantando em botecos tradicionais do centro de Curitiba, como Stuart e Hermes. Também eram conhecidas as suas aparições surpresa em bares dedicados ao rock. Você estava no balcão tomando uma gelada e, de repente, como um Cristo andando sobre as águas, Ivo abria caminho na multidão com sua guitarra a tiracolo.
Chegava, tocava duas ou três músicas e zarpava para mais uma missão na noite gelada de Curitiba. Era rock sem frescura, desses em que o ídolo cumprimenta todo mundo, entra pela porta da frente e depois toma uma cerveja com a moçada. Ivo tinha um cabelão comprido e encaracolado. Nos últimos anos mantinha uma franja que lhe deixava parecido com o Joey Ramone, só que bem mais gordo. Sua aparência bonachona lhe valeu o apelido de "Tia Marli". Essa figura era um ícone tão importante quanto a gralha azul ou a araucária para os paranaenses. Sua voz potente poderia ser reconhecida até mesmo por um recém-nascido curitibano.
Depois do clássico disco de estreia, o Blindagem gravou mais dois álbuns de inéditas. Ainda que não sejam tão bons quanto o primeiro, em todos eles há grandes canções, como "O homem e a natureza", um clássico de João Lopes, o "bicho do Paraná", "Se eu tivesse" e "Lá vai o trem", esta sobre o prazer de descer a serra do mar a bordo de uma Maria Fumaça, todas do disco Cara e Coroa, de 1986.
Em 1997, a banda lançou Dias Incertos, um disco pesado gravado parte em Curitiba, parte na Itália. Nesse disquinho há uma música que se tornaria um hino dos falidos. "Dias incertos" é uma injeção de ânimo, com sarcasmo em excesso, àqueles que já perderam o rumo. "Às vezes ando tão fudido/ Quebrado na falta de grana/ Nervoso numas de horror/ Às vezes ando tão fudido/ Travado sem saber aonde ir/ Carente, sem ter amor..."
No dia 9 de abril pela manhã, uma sexta-feira, recebo um e-mail de Toninho Vaz, biógrafo de Leminski, comunicando a morte de Ivo, que há três meses lutava contra um câncer, depois de ter passado, anos atrás, por um transplante de fígado. Toninho é da mesma geração de Leminski e Ivo e conviveu com ambos nos anos 1970. Havia muitos anos eu não ficava chocado com a morte de alguém. O Blindagem tocava toda quarta-feira em um bar próximo à minha casa. Sempre que passava em frente ao bar e via a faixa anunciando a banda, pensava comigo: "preciso ver esses caras, faz um tempão que não escuto o Ivo cantar ao vivo". Não deu! As obrigações do trabalho e a leseira que o cotidiano impõe não me deixaram "perder" uma noite de sono pra me embebedar vendo um cara que cresci escutando e que sabia estar doente (Ivo foi aos dois últimos shows da banda com uma bolsa para urina). Só me restou dar uma passada rápida no teatro Guaíra, onde Ivo estava sendo velado ao som que produziu em vida. Com o coração apertado, como se estivesse perdido um parente próximo, à noite cheguei em casa e me encharquei de vodca ouvindo Blindagem. Valeu Ivo!
Cheguei em Curitiba em 1968, vindo de um seminário por mais de oito anos; não havia encontrado um ambiente cultural no interior onde eu morava, mas Curitiba tinha tão quente vida, mesmo em noites tão frias. Bem o dizia Leminski: "O Rio tem Mar, mas Curitiba tem Bar!" Eu, sempre careta, vi logo isto muito bem em uma noite em que Juarez Machado, Fressato e este iniciante, pintavam alguns painéis para a fachada dos cinemas. Tudo estava tão calmo e produtivo, quando apareceu o Ivo com o Leminski, já vodcados, mas blindados, lúcidos e poetas de sempre! Depois deste dia, fiquei de fora, alguns ainda latiam e meu latim não combinava com isto tudo. Mas deixaram saudades que não passam, ficam como estes quentes e grandes nomes Curitibanos, na memória de nossa gente!