Tem algum sentido ainda a religião no mundo moderno e, principalmente, o Cristianismo? O animal humano precisaria ainda dos valores metafísicos organizados na forma de doutrinas religiosas que servem no mais das vezes apenas como sistemas vigilantes da moral e da conduta dos comportamentos sociais?
Os avanços da engenharia genética, em que pesquisas científicas produzem em laboratório "células sintéticas", com genomas artificiais gerando vida (reconstituição do organismo doente) e também gerando morte (a possibilidade destas bactérias criadas detonarem a autodestruição das células quando colocadas em contato com a vida fora do laboratório ― como o fatal Antraz, usado em guerras biológicas), faz o homem ter a sensação de estar substituindo Deus. Quem manipula, cria ou destrói a vida agora somos nós, e não Papai do Céu.
Livros e mais livros têm sido publicados reacendendo o debate sobre a inexistência de Deus. Indagou certo pensador: quando, finalmente, enterraremos de uma vez por todas nossos mortos, nossos "Cristos", "Guevaras", "Lênins" etc.? Acrescente-se agora, com a nova onda de ateus finalmente saindo do armário, e com os escândalos da igreja católica, com processos contra padres que andam estuprando crianças sob sua proteção, a necessária pergunta direta: o cristianismo é bom para o mundo?
Esta pergunta é o título do livro lançado agora pela Garimpo Editoral, no qual debatem a questão dois americanos, o pastor Douglas Wilson, que acredita que o cristianismo é bom e verdadeiro, e o ateu Christopher Hitchens, que acredita que o cristianismo é uma grande mentira e, no final das contas, algo perverso.
O livro se organiza a partir de capítulos onde a fala de cada um revela sua oposição ao pensamento emitido pelo debatedor no capítulo anterior. O debate é quente, inteligente, dos dois lados. Mas a grande questão que o livro suscita é a seguinte: estamos num tempo em que verdades dogmáticas não colam mais. Que o poder exercido por religiões supostamente bem intencionadas, mas no fundo perversas, pode ser colocado no banco dos réus de um tribunal internacional que procura preservar a vida acima de tudo, inclusive acima da crença em um suposto Deus criador.
Mais ainda, o livro reabilita o debate público sobre o sentido que algumas ideias tiveram no passado da história e a irrelevância que podem vir a ter na vida atual. Revela ainda a possibilidade civilizada de se chocar conceitos, verdades e preceitos que antes estavam longe do debate por serem consideradas verdades intocáveis, artigos da fé cega (que no fundo tem se provado uma faca amolada), e que, agora, podem ser questionadas, discutidas, repensadas à luz da própria história destas ideias.
Nos ambientes onde a intelligentsia vive, como diz Adorno, é fato que deve-se levar em consideração a historicidade em relação a quaisquer constructos metafísicos de método ou de verdade. Nos meios menos informados, no entanto, isso não é levado em consideração, sendo a fé que impera em sua absoluta e inquestionável certeza.
Após a crítica de Nietzsche às ideias morais "a golpes de martelo" e Schopenhauer, com seu pessimismo, o imperativo categórico que move o pensamento moderno é o de que a hipótese de um ideal metafísico deve ser, no mínimo, dinamitada.
Retomando mais de perto o livro O cristianismo é bom para o mundo? ― Um debate (Garimpo Editorial, 2010, 80 págs.), podemos dizer que algumas ideias são centrais no debate entre Hitchens e Wilson. A primeira delas, apresentada por Hitchens como oposição ao seu interlocutor, diz que o que move inicialmente o debate é o fato de ele considerar uma falsidade "as alegações metafísicas da religião, e também tem a ver com o que penso ser um despropósito a afirmação de que a religião é a fonte moral em nossa conduta".
Outra ideia de Hitchens é relacionar Deus ao absolutismo: "Para mim, a ideia de que uma pessoa possa desejar um senhor supremo, absoluto e imutável, cujo reinado seja eterno e inquestionável, alguém que exija propiciação incessante e que nos mantém debaixo de vigilância contínua, não importa se estamos dormindo ou acordados, vigilância que não tem fim depois de nossa morte, bem, essa ideia para mim é desconcertante. Um sistema assim tão pavoroso significaria que palavras como 'liberdade' e 'livre-arbítrio' não têm sentido algum. Esse estado de Big-Brother celestial seria o cúmulo do totalitarismo, muito mais hermético e tirano do que o estado visto em 1984, pois os 'crimes do pensamento' ― ofensas cometidas apenas na imaginação ― seriam detectadas no momento em que ocorressem".
Um terceiro ponto levantado por Hitchens diz respeito ao fato da Igreja Católica, embora proclame suas benesses, também ter que responder pelos sistemas opressivos com os quais colaborou ou instituiu. "A igreja católica tem de gastar muito tempo para responder pelos crimes cometidos contra a humanidade, e gasta muito dinheiro hoje para indenizar as vítimas de ações de estupro e tortura contra crianças".
Segundo Hitchens, a religião ocidental cristã nos condena desde seu mito fundador. Adão e Eva são punidos de forma repugnante por terem exercido uma faculdade a eles concedida na criação. E nós, que nem lá estivemos, somos condenados a pagar por essa transgressão até o fim dos tempos, tendo que rastejar para alcançar o favor de um Senhor tirano difícil de agradar. Esse dado faz Hitchens dizer que a Bíblia não passa de um conto de fadas sinistro, recheado com a dimensão vazia do sobrenatural.
A conclusão de sua tese é de que existem maiores chances de se viver democraticamente em países onde a religião é pouco presente do que em países fortemente religiosos (veja-se o caso dos totalitarismos do Irã, Afeganistão talibã e Arábia Saudita). Por isso, entre outras coisas, o cristianismo é inútil para o mundo.
Já Douglas Wilson tem outra forma de pensar a religião e Deus. Seus argumentos são quase de um poeta. Deus tem suas dádivas: "Ele sabia que o pôr do sol em tons de azul, laranja e cinza seria tão lindo e incrível que nos deu olhos para que pudéssemos enxergar em cores". A vida como um milagre incessante de beleza e admiração é obra de um ser supremo. (A velha ladainha de sempre, eu diria, com a licença do leitor.) Ele ainda nos diz que Deus nos deu mente e coração com a única finalidade de podermos agradecer ao Supremo por essas suas benesses.
Diz Wilson: "Ele poderia ter feito todos os alimentos nutritivos, mas com gosto de jornal ensopado de óleo. Em vez disso, Ele nos deu sabores de melancia, castanha de caju, cerveja preta, pipoca com manteiga, maçãs, pão fresquinho, picanha assada e uísque 25 anos. E claro, Ele sabia que precisávamos agradecer-lhe tudo isso; então nos deu mente e coração". Bela poesia, não é Sr. Wilson? (Ainda bem que ele não se esqueceu de nos dar uísque 25 anos.)
Essa dádiva, a vida e seu milagre, só podemos e só temos que agradecer a alguém, no caso, Deus. Afinal, diz Wilson, "conforme aprendemos com nossa mãe, quando alguém nos dá um presente como esse, a única resposta é agradecer à pessoa".
Ele retoma o apóstolo Paulo para insistir nessa proposição do lugar central do relacionamento do homem com Deus: a gratidão. Ou seja, Deus é Deus e ser grato a ele é a única coisa de importante que nos resta nesta vida. E o cristianismo está aí para ser a ponte entre os homens agradecidos e a Suprema potência do universo. E também o melhor sistema especulativo para guiar a vida do homem a partir da máxima "ama o teu próximo".
Hitchens dirá que essa regra não necessita da religião para existir, pois toda sociedade que se pretende minimamente estável adotaria essa máxima naturalmente como princípio ou desapareceria. Além do mais, em nome de deuses supremos sabemos que assassinatos intermináveis foram praticados ao longo da história. E sabemos que o mal muitas vezes é praticado em nome de um bem questionável.
O debate se estende dentro do livro a outras questões, de importância vital nesse debate, mas que no fundo retomam o tema central que é sobre a importância ou não do Cristianismo para o mundo. Não cabe nesse artigo retomar todas elas, por falta de espaço. No entanto, uma coisa acaba ficando como lição: que o cristianismo não seja nossa única forma de ética para a vida, dadas as implicações que religiões totalitárias causam no próprio meio social. Não se deve, pois, confundir ética social com cosmologia e poder supremo.
A vida social exige ética, mas, como disse Heráclito, "o ser e não ser permanentes da dialética do universo não são orientados para um objetivo específico, ético ou moral, o universo é um fogo eterno e não foi feito nem pelos homens nem pelos deuses. Não tem ética, portanto."
Do meu ponto de vista particular, acho que Hitchens tem muito de novo a dizer ao leitor; quanto a Wilson, tem somente uma velha ladainha a repetir.
Para terminar, faço uso de um trecho de Heine, citado por Hitchens, para que o leitor pense por si:
"Na escuridão, um cego é o melhor guia; mas quando chega a luz do dia, é bobagem usar cegos como guias".
Queria pinçar alguns pontos do artigo: "com os escândalos da igreja católica, com processos contra padres que andam estuprando crianças sob sua proteção..." O El País publicou, em 08/04/2010, um artigo em que comentava a onda de denúncias feitas pelo periódico alemão Der Spieguel, segundo o qual dos 210 mil casos de pedofilia denunciados na Alemanha desde 1995, apenas 95 deles envolveram religiosos, não necessariamente católicos. E os demais 209,905 casos? A Der Spieguel, como a midia no geral, vem trazendo uma "informação rasteira", que associa a pedofilia ao celibato e à igreja católica. Nada mais falso, como pode ver no parágrafo anterior. Depois, por uma questão conceitual. O celibato significa uma restrição a atividade sexual, seja o religioso heterosexual, homosexual ou pedófilo. Só para fechar. O artigo diz muito bem: "...nova onda de ateus finalmente saindo do armário...". Concordo plenamente, pois é onde eles todos cabem: em um armário.
Completando: ainda segundo o El País, que consultou especialistas religiosos e leigos, a pedofilia nas instituições religiosas refletiria um quadro estatístico equivalente ao da propria sociedade como um todo e, provavelmente, os religiosos pedófilos teriam buscado a religião como uma maneira de facilitar a sua vida e ter a proteção da instituição. "A conclusão de sua tese é de que existem maiores chances de se viver democraticamente em países onde a religião é pouco presente do que em países fortemente religiosos (veja-se o caso dos totalitarismos do Irã, Afeganistão talibã e Arábia Saudita). Por isso, entre outras coisas, o cristianismo é inútil para o mundo..." O preconceito contra o Islamismo, que não é de hoje, explica o argumento entre aspas. É notório que nos EUA se professa um dos dois maiores fundamentalismos religiosos do mundo - protestante -, ao lado do próprio Irã e, pelo que se sabe, os EUA não tem qualquer problema com: "... chances de se viver democraticamente...".
Os ateus formam a classe de credo que mais cresce no mundo, e não apenas no Brasil, onde já somam mais de cinco milhões. Se houver armário tão grande, então realmente eles cabem em um. O livro a que o artigo se refere trata da utilidade do cristianismo, enquanto Paulo Athayde apresenta apenas argumentos sobre o fato de a igreja ser tão criminosa quanto a sociedade; ou seja, mais um argumento contra a utilidade do cristianismo. Se aqueles que se dizem representantes de deus na Terra são tão criminosos quanto os pecadores que têm a tarefa de guiar para a salvação, então por que não deixar que os próprios pecadores se guiem? Pior: o próprio contra-argumento sugere que os pedófilos ingressam no clero para ser acobertados. Dizer que os Estados Unidos não têm problemas democráticos com o fundamentalismo é de uma ignorância geopolítica tão grande que nem vou considerar como algo que se deva responder.
E se for possivel, completo com as palavras do artigo que escrevi "Feliz Páscoa" que pode ser encontrado no aqui e que dá a dimensão da "brutalidade" do cristianismo, a começar por cultuar um ser que sequer existiu. Se vale a opinião, que seja autorizada a sua inserção, junto ao e com os "conhecedores" e "sabedores" dos "poderes" únicos do Ser Supremo.
Confundem cristianismo com cristandade. Cristianismo é seguir a conduta do Cristo. E quem segue, exceto uns poucos? Não é porque padres e pastores desvirtuaram as palavras de Jesus que Ele deixou de dizer a coisa certa. Estaria se revirando no túmulo se não tivessem roubado seu corpo (nem bem morreu e já começaram a fazer besteira). Aliás, foram roubar um cadáver de quem ia ressuscitar. Tiranos e sanguinários de todos os tempos diziam agir em nome da verdade. E, por isto, a verdade deve deixar de existir? E que marotice é esta, Jardel, que vemos no livro citado? Pedir para um pastor falar em nome do cristianismo é o mesmo que criar debate sobre comportamento e confrontar um professor e um aluno da pior turma do ginásio. E para não dizerem que não acredito na existência de padres ou pastores sinceros, existem uns poucos, apesar dos horrores que fazem suas igrejas. São homens de fé inabalável.
A questão é definir Deus, afinal, dizer que acredita ou que é ateu, sem ter definido o que é ou quem é Deus, me parece muito improdutivo. Jesus de Nazaré, apelidado de o Chrisna (Christus) disse que somos todos assemelhados, negou ser Deus perante Pilatos e disse que o Pai tem tantas moradas... Mora dentro de cada um, ou seja, Jesus não deve ter sido muito compreendido pois também Ele não acreditaria no Deus Cristão! Interessante isto, mas basta estudar o que foi atribuído como palavras dele.
Debater princípios religiosos é uma arena que não tem dados bons resultados, é preciso começar com outros princípios básicos de existência. Acima de tudo, o ser humano precisa saber que, para ser totalmente LIVRE, não pode haver ninguém acima e ninguém abaixo, isto seria Divino e à nossa imagem e semelhança. Quem não souber definir a si mesmo, como poderia definir Deus? O dia em que de fato alguém definir Deus, perceberá que está definido a si mesmo no básico de existência, antes deste Universo!
Como diria Nassim Taleb, um filósofo contemporâneo: "Você pode eventualmente fazer prevalecer a verdade sobre mentiras; já um mito só pode ser sobreposto por outra narrativa".
Caros amigos, primeiro lugar: Deus e Cristo não são uma exclusividade da Igreja. A Igreja é apenas uma instituição que pode e vai falir um dia como todas as outras. Agora, querer convencer as pessoas de que elas não devem sentir algo maior e mais profundo, somente por causa de um número de pessoas que não tem nada a dizer e a sentir sobre, normalmente formadas a partir de ideias políticas e religiosas caducas e ultrapassadas é um enorme engano. Convencer as pessoas que Deus não existe é a mesma idtiotice de querer convencê-las de que Ele existe. Você tem que sentir. É uma espécie de integração e isso só se encontra muito particularmente. Muito particularmente.
Realmente, essa coisa de dizer que o cristianismo está ultrapassado já é antiga... Mas vejo-o cada vez mais pop, principalmente nos meios em que o populacho é maioria! Esse negócio de dizer que tem que sentir um Deus, um Cristo, um ser superior é coisa de quem não estuda e não questiona a vida, talvez por medo do que descobrirá através desse questionamento, talvez por simples e caduca opinião... se não consigo entender, então deve ser assim como me disseram que é! Buscar respostas nos filósofos é um exercício que, concordando ou não com suas opiniões, nos leva a perceber que o medo que sentimos da morte, e o mistério da mesma, o tal quem somos pra onde vamos etc. etc. nos leva a um melhor entendimento da mesma, e faz-nos rechaçar toda ideia moral pronta como um produto industrializado! Vejo o cristianismo como o vírus mais letal que até hoje o homem já pôde criar, seu envenenamento é cruel, e sua ilusão de vida eterna é uma dose cavalar de uma vã esperança que nunca irá se concretizar.
Só pra acrescentar: nunca vi ateus queimando ninguém na fogueira por não partilhar de suas ideias, nem tampouco atirando aviões contra prédios; o sonho de toda a pessoa religiosa é não descansar enquanto não colocar o mundo todo de joelhos partilhando de sua moral pífia. Segundo as religiões a teoria da evolução não existe... O que é importante frisar é que não há como abdicar da razão em nome de um mito, uma fantasia, medo.
Para que o Cristianismo? Para que o homem exerça a humildade.
Somos geniais, descobridores do universo e agora criamos a vida sintética, porém, por não sermos Deus, ou por não sermos verdadeiramente cristãos, como queiram, cada façanha nossa reverte-se em poder e arrogância. Quanto mais conhecimento, mais soberba... Que pequenez! Nós, os pensadores, deveríamos ser os primeiros a admitir que, para os mistérios do universo, para a existência ou não da alma, para a existência ou não de Deus, a resposta correta é: Só sei que nada sei.
Excelente texto. Embora eu seja Ministro de uma Instituição Religiosa, não deixo de apreciar textos onde se fazem reflexões sobre o aspecto religioso. Eu digo que o Cristianismo vivido e praticado pelas religiões institucionalizadas de forma alguma é a continuação de O Caminho, como era chamado o movimento pelos primeiros Cristãos já no tempo dos Apóstolos. Portanto, concordo com todas as críticas feitas no artigo, desde que esta diferença por mim apontada seja levada em consideração. Devo, contudo, fazer uma crítica quanto ao uso do termo "metafísica" no artigo. No artigo, metafísica aparece quase como sinônimo de religião. Ora, a religião possui aspectos metafísicos, que muitas vezes seus arautos defendem, mas Metafísica vai muito além disto. Eu digo ainda que a Metafísica devia ser mais estudada, chegando ao ponto de substituir as religiões organizadas. A compreensão metafísica de Deus não tem nada a ver com as fantasias da teologia vigente. Em todo caso, Parabéns pela discussão!