Anos antes deste terremoto que flagelou a cidade chilena de Concepción, caminhando pelas ruas de seu centro ao lado de Daniel Jerónimo, tentava ensiná-lo a pronunciar "Sé", ao que ele replicava, "Cê... Cê!". O esforço era inútil, por mais que ele tentasse, colocando até mesmo sua língua para fora numa tentativa desesperada de soltar um "Sé" aberto verdadeiro. Talvez, mais do que uma limitação fonética, ele tivesse que estar lá ― agora como eu me encontro em plena rosa dos ventos ― para tentar entender a praça e, assim, pronunciá-la. Da mesma forma, quando eu lhe perguntei como era a sensação de um terremoto, ele não poderia explicá-la sendo uma linguagem que o acompanha desde sempre, e eu não poderia entendê-la sem nunca ter sentido os abalos de uma formidável espreguiçada do planeta.
E lá está ela: a catedral neogótica assustadoramente grande, impávida e imóvel surgida logo na boca do metrô me dá a impressão de um monstro marinho de pedra adormecido, ornado de escamosas reentrâncias e espinhaço de cobre azulado. A praça é uma continuidade da estação ― propostas indecorosas ensaiadas na catraca para serem levadas a cabo à luz do dia ―, uma forte dose de mendicância, trabalho árduo, vagabundagem e perdição. Saída de um livro de Graciliano Ramos, é auscultada pela Catedral Metropolitana de São Paulo uma família fincada como estátua na praça mais movimentada de um país imenso. Está em apogeu precário, com seu metrô borbulhante, o projeto arquitetônico de sua igreja concluído e mil miseráveis à sua volta, como eu. As escadarias que dão acesso do metrô à praça parecem ter sua continuidade nos degraus baixos que elevam a catedral a um nível majestoso, de certa forma imune à miséria circundante. Dentro dela a vida se eleva e se transforma numa lembrança lenta e apagada. Tibiriçá e Feijó descansam na cripta, alheios ao vaivém dos passantes e dos carros da guarda civil metropolitana. O som das buzinas e dos autos passando rente às grandes portas laterais reconforta, para depois, na saída da catedral, tornar-se a vida novamente colorida e brilhante, acertando em cheio seu breve esquecimento. Quem não vai à Sé está só, apartado da beleza, do útil e do inútil unidos em discreto equilíbrio. A vida acontece no centro, nos bairros ela boceja.
Observar na praça é uma contemplação desdenhosa, na qual a fugacidade dos passantes e dos olhares atesta que, aqui, mais do que nunca, impera a máxima "todos te observam ainda que ninguém te olhe". Deslumbro-me tentando não demonstrar o rosto da beatitude ao sair da Sé e me deparar com as palmeiras enfileiradas da praça, como uma continuidade das sóbrias colunas cinzas da catedral. Assim, recém-descida da escadaria, a primeira mirada no prédio da Unesp, esquina com a rua Benjamin Constant, se revelou, "que beleza, então é este prédio antigo, estilo europeu". Depois, tentando olhar mais detidamente, do alto da catedral, "então, ele é mais belo ainda do que eu supunha, lá estão todos os elementos numa cópia quase perfeita de outro hemisfério, veja a cúpula trabalhada, a pequena antena aumentando sua altitude, a sacada forjada a ferro em cada uma das janelas, a decoração floral, as esculturas com homens entalhados sustentando a porta central em que o moralismo vestiu as genitálias, o tom atual esmaecido, retratando que a passagem do tempo não ruiu as paredes, mas conferiu-lhes uma severidade sedutora". Como é difícil contemplar a arquitetura do centro quando precisa-se prestar atenção em tudo ao mesmo tempo e olhar para o chão, condição dos tímidos que tudo querem.
Agora, já no sexto andar do prédio, sentada trabalhando, de repente o chão treme, a mesa treme, o lápis começa a entrar em ressonância, mas tão de leve que não há medo (enfim chego a um entendimento com os chilenos, que não temem os baixos tremores cotidianos?): é apenas a praça passeando, o metropolitano cumprindo seu trajeto em múltiplos sentidos e direções. Lembro-me do metrô de Santiago, por exemplo, onde eu era não apenas uma turista, mas alguém totalmente sem rumo, fragilmente temporária, e, ainda que estivesse indo a algum sentido de determinada linha, não estava indo de fato a lugar algum. Minha presença era tão anacrônica que a atitude dos olhares era de um desdenho curioso, me atravessando como uma peça fora do jogo. Já na Sé, irônico é que neste marco zero em que piso em cheio foi onde me senti em algum lugar, ponto neutro a partir do qual do Estado de São Paulo se iniciam os caminhos.
Ao se atravessar a praça novamente, desviando de gente e urina, voltar à estação mais movimentada da cidade é uma aventura na qual o cenário se descortina como um formigueiro humano fascinante e desolador. Um sindicalista metroviário solta palavras que vão escoando até se tornarem ininteligíveis pelo eco da música ao vivo. "Você vai tomar o trem sem a mesma segurança, pois não há condutor". A linha amarela do metrô terá sua inauguração no dia seguinte, será uma grande data para a cidade, cada vez mais distante do que ela tem sido. Na própria Sé, por exemplo, o que restou do largo? Nem mesmo a velha igreja e os coches da foto de Marc Ferrez de 1880 podem me trazer mais do que a noção de que aquela terra é a mesma que piso, que Tibiraçá elegeu como sagrada, apesar do tempo modelá-la ao sabor da transitoriedade e dos estilos de época.
E assim atendo ao chamado íntimo do vão da estação, grande sacada em que a vida passa e repassa, mas que também pode ser por onde seremos tragados. Adentro na plataforma e, mergulhada nessa piscina de sensações raras, começo a boiar, as próprias ondulações do corpo na água se difundem doce aos ouvidos, o peito liso e inflado de respiração entrecortada, e então ela nos leva em movimento de berceuse, sinto a força de minhas pernas firmemente dobradas e seguras de possuir um lugar no mundo, com o dever de ir, o sentimento de pertencimento ante um cardume e um leito e, ainda assim, como se enfim flutuasse, nadamos todos no mesmo sentido por dois minutos fugidios, cada viagem sendo um passeio irremediável do qual sempre se tirasse uma ponta de prazer, uma revelação qualquer, uma sintonia no girar das engrenagens.
A praça da Sé é o centro e o coração do mundo, a arquitetura do lugar mostra um pouco da história e da poesia de quem passa por ali. Quanto à desgraça, a vagabundagem, é o retrato austuto de quem governa. Ou melhor, desgoverna. Num país que despreza os homens, surgem apenas os lupens.
Incrível o contraste do ritmo da vida na praça e na Catedral da Sé. A sensação que tenho quando entro na Catedral é de que o tempo ficou suspenso no ar! Sente-se a vida parada dentro da Catedral... enquanto lá fora corre frenética. Obrigada pela reflexão poética, Elisa :)