Entre 13 de maio e 18 de junho deste ano a Casa de Cultura de Londrina (PR) expôs a instalação Ascese, do artista plástico Eduardo Faria. A obra é composta por dois grossos cadernos repletos de desenhos do artista, instalados numa espécie de cenário religioso, sustentado por um céu colocado ao chão e por um crucifixo na parede, situado acima de sabonetes onde se vê gravada a palavra "puro". Há ainda frases ao lado e desenhos coloridos do osso sacro.
No sentido que lhe empresta o dicionário, ascese é a prática da renúncia ao prazer ou mesmo a não satisfação de algumas necessidades primárias, é um processo de santificação pessoal, mortificação. Ascese cristã é o esforço que fazemos para dominarmos os nossos sentidos, corrigirmos as nossas más tendências e vivermos um processo de libertação interior. A Igreja propõe aos seus fiéis como prática para a ascese o jejum e a abstinência sexual, as penitências, o louvor e a adoração ao Senhor.
O indivíduo que pratica ascese é partidário de uma filosofia de vida na qual são refreados os prazeres mundanos e se propõe a austeridade em todos os sentidos. O que se persegue é uma vida regida pela espiritualidade. Acredita-se que com a purificação do corpo consiga-se a purificação da alma e uma compreensão da divindade que levaria o ascético a encontrar a paz interior. Isto pode ser obtido com a automortificação, rituais, e uma severa renúncia ao prazer.
O artista plástico Eduardo Faria com certeza está sendo irônico ao usar para a sua instalação o título de Ascese. Quer brincar com os signos dessa prática da mesma forma com que o desejo brinca com os nossos corpos e almas, mesmo quando tentam viver asceticamente. Ou da mesma forma com que a arte brinca com a nossa imaginação, mesmo quando queremos ter total controle racional sobre o seu significado.
A palavra erotismo, contrário impertinente de ascese, é a palavra que surge imediatamente quando pensamos nessa instalação. E existe uma dialética entre o desejo erótico, "o que não tem juízo, nem nunca terá", e as preocupações inquietantes que alimentam a arte de Eduardo Faria, como veremos mais abaixo.
A inquietude do erotismo é a inquietude do desconhecido. A arte, como o desejo, é sempre o que não se sabe, o que não se havia notado, o não dito, o pouco usual, o insólito. É também, como o erotismo, o dificilmente disciplinável, canalizável, definitivamente dominável. Duas potências inquietantes que nos levam ao risco e que nos fazem entrever o maravilhoso, o extraordinário, o emocionante, o sublime, como também o diferente, o desconhecido e o perigoso.
Na poética de Eduardo Faria, o desejo envolve múltiplos objetos: cadeiras, mesas, paredes, roupas, palavras, a pintura clássica, partes do corpo do outro. Todos estão presos a um movimento de aparição/desaparição, formando um ornato para o leve perfume do erotismo que se advinha a cada momento de sua obra.
Se o desejo está em suspensão aqui, como no desenho de uma cadeira solitária, ali, um pouco à frente, garante sua vitalidade no encontro carnal dos corpos que se fundem virilmente em um só, na busca do prazer, do amor e da volúpia. Nesse transe imagético, a arte de Eduardo Faria realiza a crença de uma possível convivência inata entre o desejo e o objeto.
No seu trabalho, o desejo flutua sobre tudo (cores, peças, corpos), mantendo viva a ideia de um jardim suspenso entre a arte e os obscuros caminhos da sexualidade, que também atinge o espectador de forma sensorial (já que os cadernos foram feitos para serem manipulados). Sem que haja distinção entre uma coisa e outra (arte e eros), a mão daquele espectador que toca os desenhos é como a daquele que toca no corpo alheio ou em tinta para pintar.
O tema na maioria dos desenhos é o homoerotismo. Mas não se trata de uma paródia grosseira do que seria o desejo homoerótico. Ao contrário, desenha-se como uma possibilidade de revelação do que seja o erotismo para além das codificações medianas embutidas no jogo social da sexualidade vigiada pelo superego (seja homo ou hetero). Estamos talvez mais próximos da criança "perversa polimorfa", como anunciava Freud, cujo desejo se direciona para tudo no mundo e não apenas para a sua genitalização.
Pois na obra de Eduardo Faria cadeiras copulam com mesas, pinturas com corpos, espaços com objetos, e estes com a memória e com a subjetividade presente, na visível percepção dos encontros entre esses objetos que se fundem e se invadem uns aos outros e fazem parte da instância onde o desejo explode. E esta perversão polimorfa, da qual na arte somos todos partícipes, é o contraponto à sexualidade industrial, comercial, de vitrine, asséptica e programada para ser mercadoria.
O enlace amoroso é, na obra de Eduardo Faria, excêntrico, isto é, fora do centro. É por isso que não existe lugar, hora, postura vertical, horizontal, movimento, velocidade que seja definida por uma perspectiva única ou a priori esperada. As folhas do caderno se desdobram como outras epidermes, outras peles, a desdobrar-se ao espectador/fruidor num convite para outros estados de sensualidade. O tom e a forma de uma cadeira, por exemplo, são tão sensuais quanto a mera ilustração de um cópula e nos remetem à ilha dos nossos desejos secretos com mais intensidade que dois corpos enlaçados. O desenho é, de per si, fonte de sensações.
Aqui não se está em busca de uma liberdade sexual imaginária, como precisaria uma certa quinquinharia psicanalítica. O que acontece é um mergulho num exercício do metamorfosear-se mútuo da arte e do desejo, a fim de que se possa experimentar os mil estados da matéria numa espécie de canibalismo plástico-amoroso.
Não é possível entrar impunemente nesse jogo do folhear-se os cadernos, beber suas imagens, fruir sua sensualidade: quadris de seda, volúpia de volutas de móveis, falos latejantes, cores sangrentas ou doces (vermelhos, rosas, azuis), grafites a nos sujar as mãos, músculos tesos, carnes convulsivas, dedos penetrantes, ânus abertos e oferecidos, balés de penetrações, abraços fraternos, evasão e gozo, divindade e sacralidade, anjos e cristos, Da Vinci e Michelangelo, sabonete e esperma, tinta, plástico e seda, sofás e mesas, volúpia e descanso celeste.
O percurso libidinal derrama-se de uma folha a outra, de uma cor a outra, de um corpo para os objetos, realizando uma ligação interna entre os elementos sutilmente arranjados de forma rizomática no conjunto dos desenhos dentro do caderno.
A forma com que os desenhos se apresentam dentro dos cadernos pode se adequar ao termo "rizoma" (Deleuze/Guatarri): não possuindo centro nem periferia, nem mesmo saída, cada caminho pode, desde então, conectar-se indefinitivamente um a outro, num espaço com certeza cercado, mas potencialmente infinito.
As transparências de algumas folhas, que fazem imagens atravessarem de um local a outro, configura-se como essa abertura rizomática de interpenetrações que cria relações infindáveis entre as cenas que se desenrolam nos desenhos do caderno.
Os corpos que aparecem são representações do corpo erótico viril, evidentemente macho, potente, e não o corpo afeminado, tal como vemos nos trejeitos de uma homossexualidade por vezes folclórica. Nesse sentido, nos faz pensar nas robustas figuras de Michelangelo e na escultura clássica, tradição com a qual o artista faz conexão, ou nas descrições literárias de um Jean Genet, mais particularmente em seu Querelle, filmado por Fassbinder.
Existe nos desenhos a revelação das partes e o desejo do todo, a matéria e a memória que se incrustam, a lembrança e o cheiro que a permeia, as massas de grafite que delineiam e compõem a forma e o sutil fluir das linhas que desaparecem nos corpos apenas insinuados, como se fossem a lembrança da doce entrega que apaga nossas mentes no momento do gozo. O componente orgânico dos desenhos é importante para que da ascese se passe ao desejo e sua realização.
A instalação não é outra coisa que um cenário religioso onde o corpo se glorifica, onde se insurge e se vivifica no prazer e não se mortifica na dor. As interrupções de uma página para outra são como o prazer represado aqui, mas em seguida liberado ali.
Nesse santuário de corpos, os genitais são tão apetitosos que dá vontade de cortar com faca a parte que nos cabe de direito. Eles são o contraponto visível à ascese. São a fonte vibrante do desejo tornado visível, enquanto em outros lugares o desejo se insinua secreto, prodigioso em rondar os móveis, os espaços, as figuras da arte do passado, como fantasmas esperando novos corpos para possuir.
O arranjo da instalação revela aquilo que se camufla por trás da ascese. A palavra "puro", gravada no sabonete, nos remete à ideia de espiritualidade, mas ao mesmo tempo, depois de um passeio pelos desenhos escondidos nos cadernos, o mesmo sabonete ganha outro sentido, o do banho pós-coito. O céu abaixo sustenta nos desenhos dos cadernos um mundo aéreo de fellatio, cunnilingus e luxúria. O crucifixo sacraliza não mais o espírito, mas o corpo, obra de perfeição divina, tal qual pregava Michelangelo, um dos mestres da escultura da beleza masculina. Os desenhos do osso sacro nos trazem a dupla significação do sagrado e profano. Como no próprio caderno, a Santa Ceia se coloca ao lado de uma vertiginosa posse física entre dois homens que fantasmagoricamente invadem a cena.
Do ponto de vista da própria arte, os desenhos carregam uma impureza contrária à busca platônica da "forma pura", da linha espiritual, tão cara a Rafael e à cultura clássica. O uso do lápis lambuza os limites da representação, com o grafite contaminando os corpos, os objetos e o cenário.
A instalação de Eduardo Faria é a revelação da verdadeira terra prometida, onde o ascético deseja entrar, mas o faz pela porta errada.
Nota do Autor
Fotos gentilmente cedida pelo fotógrafo Rei Santos.
Para o artista-asceta, a falsidade é a arma dos homens lúcidos, não a dos mentecaptos. E ele, em qual lado se encontra? Ao lado dos reis, é isso o que sente. Veja você essa selva de canibais enfrentando-se por um preço. Tudo se vende, tudo se compra, tudo se converte à cidadania do mercado. A segunda opção é daqueles homens que venceram esse distúrbio por conta de uma ciência pessoal, mesmo que assolados por fatos casuais. Seu broto ainda permanece fincado em algum caule, mesmo que não dê flor. A dor do artista acontece 365 dias ao ano, amando um amor manco, que se alista à tropa dos guardiões de madrugadas, em seresta dividida com o lobo que faz serenatas para a lua. Como enquadrar isso diante de uma objetiva assimétrica, cujos desenhos não passam de minúsculos quadros somados entre si. Impossível!!! Para ser um artista-asceta, ou pelo menos tentar compreendê-lo é, antes de tudo, preciso muita renúncia.