Para todo lugar que se olha, há um inveterado leitor adulto condenando nossa juventude perdida por conta do resultado do ENEM, o Exame Nacional do Ensino Médio, que serve, digamos assim, para medir as habilidades de nossos não-leitores em relação à língua portuguesa.
A "mídia", esteja ela onde estiver (digo, no papel, na internet, no rádio), parece reagir à mesma pauta. Todos urubuzando o sucesso do desastre, como diria Renato Russo, em uma de suas músicas menos comentadas. Ordens são ordens, afinal. Diga aí, para a sociedade, que nossos jovens não leem nada e foram supermal na prova de português que o governo brasileiro aplicou.
Raramente se vê algum jornal ou coisa assim explicar, direitinho, como o ENEM é feito, para que ele serve, quem o patrocina, essas coisas que, afinal, interessam menos do que os gráficos dos resultados brutos. É chato ficar lendo explicações. Muito mais legal ler só a caixinha de texto da matéria. Já inspira bastante conversa de boteco, né não?
Sim, é verdade, o jovem brasileiro tem dificuldades para ler. Ah, só para lembrar de associar estes últimos dados a outros, os pais dos mesmos garotos têm as mesmas dificuldades. Dorme com essa.
O escopo do ENEM são os jovens concluintes do Ensino Médio. Na média, uma turma aí pelos 17 anos (se estiverem regulares na escola brasileira), com uns 11 anos de escolaridade (o tal Ensino Básico, que é Fundamental + Médio) e, atualmente, habituês desta tal Sociedade da Informação e do Conhecimento. Uma parte dessa turma teve acesso ao computador e à Web já na barriga de mamãe. Mas parece não ter tido acesso a outras coisinhas. Vamos lá: informação não garante conhecimento; acesso não garante habilidade.
O mesmo governo que mede as habilidades de leitura da turma é este (seja ele qual for, não me refiro ao governo Lula ou a qualquer outro especificamente, ok?) que desmontou a escola básica. E não apenas a pública, que levou a fama toda (você não se lembra, mas a escola pública já foi de dar orgulho à família inteira ― e elas ainda existem, em algumas ilhas). Desmontou também a escola privada, que não passa, na maioria das vezes, de uma empresa vendendo serviços, como qualquer outra. Educação, na boca de certos empresários, é palavrão. Para quê isso?
O ENEM é uma prova feita com base em matrizes de habilidades. O modelo de avaliação desse exame é importado. O Brasil é um dos países que mais recentemente aderiu a esse tipo de avaliação ou controle massivo dos níveis de desenvolvimento da população. O Banco Mundial está sempre envolvido nessas histórias, claro, mas o ENEM, assim como muitas outras avaliações, tem um lado muito positivo. Ao menos, hoje, a gente pode saber em que ponto da escala estamos, não é mesmo?
Habilidades são relacionadas a desenvolvimento cognitivo. Os exames do ENEM avaliam como os estudantes (em massa) se desenvolveram em português e em matemática. No português, aborda-se a leitura, em níveis de habilidades que vão ficando cada vez mais complexos. Ou... deveriam ficar. O que se nota, nos resultados da avaliação, é que os estudantes brasileiros desenvolvem apenas habilidades mais básicas para a leitura e não alcançam aquelas que dependem de um jogo mais complexo. Localizar uma informação explícita em um texto, por exemplo, é uma habilidade basicona. Nossos estudantes vão muito bem nela. Parabéns para nós, que ensinamos todo mundo a achar direitinho e rapidinho uma data, um nome de personagem, a cor do cavalo branco de Napoleão, mas quando a coisa fica mais difícil, fazer inferências, por exemplo, os nossos dados ficam no vermelho.
Lembra quando você estava no segundo grau? Era assim que se chamava, não era? Lembra daquelas questões dadas pelo professor que dependiam apenas de uma olhadela diagonal no texto para que se encontrasse a resposta? Pois é. Lembra daquelas questões tipo: "João foi com Maria ao cinema". "Quem foi ao cinema?" "João e Maria". Lembra disso? Pois é. Essas são as questões que complicam a turma que presta o ENEM. Ou melhor, pensando bem, é graças a essas questões da vida toda que nossos alunos não afundam mais.
Não há qualquer problema em saber localizar informações. Isso precisa ficar claro, claríssimo. É absolutamente necessário saber fazer isso. O problema é só saber operar assim, a vida toda, mesmo quando se está partindo para a vida adulta, universitária, profissional ou não. Lembra quando você perguntava ao professor se teria de ler "aquilo tudo" para encontrar a resposta? E lembra desta? "Professor, mas essa resposta não está no texto!". Pois é.
Mas não adianta pôr a culpa na garotada. Afinal, eles são a "Geração Y" ou os "Homo zappiens", como dizem os gringos por aí. Essa turma são os sensacionais multitarefa, que foram salvos pelo computador e pelo iPad. O ENEM é que precisa mudar, não é mesmo? Precisamos achar um jeito de capturar a coisa certa. O exame não cabe nesta geração. Meu jovem, o ENEM não te merece.
Bom, a questão é séria. Não me leve a mal, leitor (aliás, perceber ironia é uma habilidade complexa). O ENEM talvez não seja o melhor exame do mundo, e o leitor também não. Mas vamos atrás desse hipertexto: o livro didático em que o garoto estudou também não é, o professor que ele teve não foi dos mais bem-formados do país, a escola estava preocupada em colocar outdoors nas calçadas, os pais acham que comprar livros e ter acesso a bons produtos culturais é bobagem. Enfim... correlações importantes, elementos que colaborariam bastante para que o jovem fosse um leitor melhor. Refiro-me não apenas a ler Machado de Assis, mas a ler jornais, revistas, bilhetes.
Os resultados do Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional apontam para o mesmo lado. O bacana de tudo é que o INAF vale para a população, e não apenas para os jovens estudantes. Garoto e garota, se precisar de contra-argumentos, mostre isso aos seus pais.
É claro que há bons leitores no país. Nem tudo está perdido. Há, sim, uma parcela (que se aproxima dos 30% da população) que consegue inferir coisas em um texto, por exemplo. Há quem consiga entender um texto de mais de uma página. O problema é que essas pessoas são a minoria. E isso não é coisa de brasileiro, como gostam de dizer nossos amigos curiosamente travestidos de europeus ou de "o outro". Estamos todos neste barco. Uns pra lá, outros pra cá, mas é por isso que formar professores, avaliar bons livros, formar bons autores, ter boas editoras e boas escolas não é conversa fiada. É fundamental. (Ei, isto não é com o vizinho, é com você.)
Não é o ENEM que vai mudar as coisas. O que muda tudo é provocar alterações nesse sistema inteiro. Vejam que fácil! Ensinar a ler bem não depende de escola e nem de cibercultura, mas se o caminho for por aí, que seja. O desenvolvimento das pessoas sempre pôde acontecer, mesmo quando os norte-americanos não haviam inventado o computador.
Pesquisas bacanas mostram que, por exemplo, nossos livros didáticos mais bem-formulados, aqueles que são top na avaliação desse tipo de material (que vem sendo feita há bastante tempo pelo governo), evoluem pouco nas questões de leitura, ou seja, os usuários desses livros não são demandados a desenvolver habilidades de leitura mais altas. Quando o livro é muito bom, cheio de provocações interessantes, o professor não o adota na escola, exatamente sob a alegação de que o livro é difícil de usar. O editor, então, passa a solicitar aos bons autores que "peguem leve", para que o livro não fuja muito da média. Vejam que encrenca! Para melhorar a nota no ENEM há uma solução: fazer perguntas mais fáceis. Isso mudaria todas as estatísticas. Não é assim que certas pessoas gostam de resolver as coisas? (E certas políticas...)
Alto lá, mas não vamos sacrificar o professor (mais ainda). Ainda bem que nem todo mundo se seduz pelas promessas das profissões imperiais. Há, sem dúvida, excelentes professores por aí, formados em escolas de ponta. É certo que nem sempre eles trabalham em escolas que os mereçam, mas há quem consiga trabalhar muito bem. Mas professor bem formado é aquele cara que estuda, estuda, estuda. Não se pode ser professor para passar o tempo. E professor bacana investiu, quer ganhar bem (e merece, como qualquer outro profissional). Professor legal quer ser respeitado, ter vida digna e tirar férias com a família. Professor bem-formado quer ser respeitado pela escola, pelo aluno e pelo livro didático. Professor inteligente sabe como formular questões interessantes, pensa em projetos de ensino, formula aulas, tem horizonte. Eles existem, sim. E poderiam existir mais, se pudessem seguir suas carreiras com dignidade.
Enfim, caro leitor, o ciclo se fecha, mas se fecha mal. Vale a pena, no final das contas, oferecer ao seu filho(a) (ou ao seu pai/sua mãe) um ambiente cultural mais motivador, mais exigente, digamos assim. Não apenas pelo ENEM, que vai colocar você na universidade, mas pelo desenvolvimento do país, que não pode ser grande sem pessoas legais e capazes de uma boa comunicação, na língua nacional.
Parabéns pelo texto! Difícil é saber que há escolas privadas de porte nacional que já nos anos 80 faziam o discurso do "basicão e nada mais". Continue sempre nessa luta, Ana. Ela é muito importante.
Mas que texto bacana! Parabéns! Sou professora de Língua Inglesa e inúmeras vezes me pediram para NÃO ensinar Inglês na escola pública. Motivo: Se o Português já e difícil imagine o Inglês! Horrorizada, cheguei a chorar. Pobres vítimas são nossas crianças!
Moro na periferia de uma cidade do ABC paulista e observo uma coisa muito grave por aqui: o número enorme de pessoas que ascenderam para a classe média, têm bons carros etc., mas são extremamente mal-educadas, sem o mínimo de consciência de cidadania. Mesmo tendo mais acesso à escola, essas pessoas são preparadas para ser meros cumpridores de ordens. Por isso o resultado sofrível do ENEM e outras avaliações similares. Um de nossos maiores problemas está aí: uma política de educação mais preocupada em formar mão de obra técnica do que gente apta a pensar, interpretar a realidade em que vive. Para onde será que vamos nesse caminho?
É triste constatar que a verdade está clara nesse texto; estamos numa transição para uma nova era - a da robotização... Quem não consegue tirar conclusões escondidas sob a fala ou a escrita é meio cego, surdo e, consequentemente, mudo para a vida! Cabe uma revisão de propósitos no imediatismo dessa corrida sem rumo a que nos propusemos, implicitamente, quando nos recolhemos a nossas convicções e deixamos o mundo correr solto. A revalorização do professor e uma escola que se envolva na formação completa dos seus alunos são imprescindíveis para a formação de uma sociedade melhor e mais culta. Parabéns, Ana Elisa. Seus textos estão cada vez melhores!
Excelente texto! Eu sempre me pergunto se existe um caminho na educação de massa, focada nos indicadores globais, que consiga suscitar o potencial desta nova geração. Definitivamente, o meio digital apresenta diversas possibilidades de esquivar do aprendizado, principalmente com o CTRL+C e CTRL+V, mas como professores temos que nos adequar à realidade deles. Ganhou mais um follower no Twitter! Muito legal seu texto.
Ana, muito oportuno o teu texto. Considero que a mudança de voltagem na avaliação do ENEM visando a uma "estatística favorável" é, de longe, mais vergonhosa que a tônica de que abrir o ensino superior deteriora o desempenho das universidades quando destinados àqueles que não tiveram oportunidade por vias tradicionais. Como muitos estudantes, já nos submetemos por diversas vezes às provas facilitadas as quais não trazem nenhum louvor, o que às vezes dá até vergonha.
Olá, Ana. O seu texto é bem abrangente, desses que ou derruba alguns dos nossos conceitos ou reforça-os com embasamento. Não sou da Geração "Y", mas me inscrevi no ENEM para obter o diploma de Ensino Médio - que, diga-se de passagem, é bem Médio mesmo, para a grande maioria da Geração tão carente que mal sabe que é "Y". Eu cursei o ensino fundamental e metade do médio numa escola que era particular, mas tinha um vínculo com o estado e isso permitia que pobres bolsistas como eu pudessem ter acesso a um ensino de qualidade não apenas Média. Aprendi muito nesta escola, e, mesmo assim, queimei todas as aulas cansativas e improdutivas para mim por horas dentro de bibliotecas, senão da escola, as da rua, sebos... Do pouco que consegui aprender nesta escola, muito me rende até hoje, e depois de ter estudado lá, nunca mais consegui estudar em escola alguma, então desisti, porque sempre ansiava por reencontrar nos novos mestres algo do que eu tive com os meus.
Ana, vejo o pouco interesse do governo (não só o daqui) em mudar esta realidade bisonha. Quanto mais néscio e alienado for o cidadão, melhor. Mesmo nas escolas particulares existe essa deficiência, acham que por dar aulas em inglês já são diferenciados o bastante. O conteúdo do que se ensina é mínimo e por vezes desnecessário, um monte de coisas supérfluas que não conferem conhecimento e muito menos cultura. A internet com seu linguajar bisonho que foi formado a partir do pouco conhecimento da língua escrita e falada tem contribuído demais para esse acesso à desinformação e à incompetência de interpretação textual. Professores mal formados e que não procuram melhor capacitação existem aos milhares; já aquele que corre contra a preguiça e se capacita, não consegue apoio aos seus projetos que tornariam a aula e o apredizado mais eficazes, pois tem que mostrar números e não qualidade (repetência zero 10 x 0 instrução adequada).
Ana Elisa, pois é, você disse tudo. O ENEM quer o que não se dá à juventude dentro da escola. E não o culpo; não se deve nivelar por baixo. Infelizmente sempre que penso nisso conhecendo a rotina diária dos professores e das escolas, me lembro como estamos longe de chegar a uma educação realmente interdisciplinar e que faça sentido para quem é jovem. Excelente contribuição a sua.