Instantes: a história do poema que não é de Borges | Isabel Furini | Digestivo Cultural

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Terça-feira, 24/8/2010
Instantes: a história do poema que não é de Borges
Isabel Furini
+ de 30200 Acessos
+ 13 Comentário(s)

Acho que foi em 2005. Eu orientava oficinas de textos no Solar do Rosário, em Curitiba, quando uma amiga falou do poema intitulado "Instantes" (ou "Momentos"), com "dicas" de mente positiva, de autoria de Jorge Luis Borges. Minha primeira reação foi gritar: Não pode ser de Borges! Ela insistiu, dizendo que o texto estava circulando pela internet.

Eu retruquei: Borges escrever um texto de mente positiva? É algo assim como Drácula revelar seu amor pelo leite!

O poeta cego, escrevendo temas de positivismo mental? Borges? Aquele cego de voz amarga que eu havia escutado em uma palestra em 1970, quando estudava filosofia em meu país? A turma o escutou em silêncio, olhando-o como a um ídolo. Apesar de muitos o odiarem por sua posição política (extrema direita).

Ele divertiu a plateia com frases irônicas como: "as pessoas têm o mau costume de morrer", e "minha mãe tem tantos anos que ela não é eterna, ela é imortal". Depois falou dos paradoxos de Zenão de Eleia.

Só participei dessa palestra. Se fosse hoje, não perderia uma única oportunidade de escutá-lo. Mas, na época, eu era jovem e estava mais interessada em passar longas horas em bares, discutindo temas de filosofia com meus amigos Alice, Jorge e Cristina, que em escutar um gênio como Borges. Vocês sabem como é... aos 20 anos, a gente se acha dono do mundo ― e demora um tempo até entender que o mundo é que é o dono da gente.

Escutei dizer que Borges reclamava de tudo ― mas isso é cultural. Afirmam que os argentinos nascemos reclamando do médico e das enfermeiras. E nossas primeiras frases não são "eu amo a minha mãe", nem "eu amo meu pai", mas "mamãe, a fralda está apertada", "a mamadeira está fria"...

Lembrei-me do conto "O Imortal". O final reduz o conhecimento e a vida humana a palavras... O narrador afirma: "Palavras, palavras deslocadas e mutiladas, palavras de outros, foi a pobre esmola que lhe deixaram as horas e os séculos". Esse Borges irônico, mordaz, cáustico, filosófico, amante dos livros de Schopenhauer e dos paradoxos de Zenão, havia escrito um texto de mente positiva, antes de morrer? Isso não seria o paradoxo de Zenão de Eleia, mas o Paradoxo de Borges.

Bem longe dos textos positivos (ajudam as pessoas, mas não têm valor do ponto de vista da literatura), Borges sempre foi um aristocrata da palavra. Adorava reformular o mundo. Sua visão não podia ser contida nem limitada no acontecer diário. Em um texto, ele alega que existem dois Borges, um que levanta da cama, toma o café, faz a barba. O outro Borges, ele vê nas enciclopédias, nas revistas literárias. E termina, deixando uma dúvida sobre o leitor: "não sei quem está escrevendo esta página, se eu ou ele".

O que deslumbra em Borges é sua escrita que nos leva por caminhos imprevisíveis. É sua visão do mundo. Sua linguagem cultíssima, consolidada por muitas horas de leitura e estudos. Borges provoca, desestrutura e mostra ao leitor que o mundo pode ser interpretado de outras maneiras. O poema: "Instantes", de autoria de Nadine Stair, é como um acalanto. Os poemas de Borges são turbilhões. Estéticos. Intensos. Avassaladores. Sacodem nossa sensibilidade.

A literatura era sua matéria prima. Ele foi um pensador. Um criador apaixonado, de visão singular. Os textos de Borges dão asas ao leitor, enquanto os textos de mente positiva têm um enfoque unilateral do mundo.

Vejamos o poema:

Instantes
"Se eu pudesse viver novamente a minha vida,
na próxima trataria de cometer mais erros.
Não tentaria ser tão perfeito, relaxaria mais.
Seria mais tolo ainda do que tenho sido, na verdade
bem poucas coisas levaria a sério.
Seria menos higiênico, correria mais riscos, viajaria mais,
contemplaria mais entardeceres, subiria mais montanhas,
nadaria em mais rios.
Iria a mais lugares onde nunca fui, tomaria mais sorvete e menos lentilha,
teria mais problemas reais e menos problemas imaginários.
Eu fui uma dessas pessoas que viveram sensata e produtivamente
cada minuto da sua vida; claro que tive momentos de alegria.
Mas, se pudesse voltar a viver, trataria de ter somente bons momentos.
Porque se não sabem, disso é feito a vida, só de momentos.
Não percam o agora.
Se eu pudesse voltar a viver, começaria a andar descalço no começo da primavera e
continuaria assim até o fim do outono.
Daria mais voltas na minha rua,
contemplaria mais amanheceres e brincaria com mais crianças,
se tivesse outra vez uma vida pela frente.
Mas, como sabem, tenho 85 anos
e sei que estou morrendo."

As mensagens do poema "Instantes" são belíssimas, mas foi escrito por Nadine Stair. Outros afirmam que existe uma publicação desse poema na Seleções Reader's Digest de outubro de 1953, do escritor e humorista Don Herold (1889-1966). Acho que, como humorista, ele deve estar rindo no céu, vendo a confusão que seu poema foi capaz de causar nesta Terra.

Abordei o assunto porque uma pessoa ― também poeta ― disse-me que, para ela, o poema era de Borges, e que havia uma confabulação para ocultar seu arrependimento da forma como havia vivido. A verdade é que todos estamos arrependidos de alguma coisa ― ainda que nem sempre o confessemos. Morrer é fechar o livro, sabendo que não poderemos escrever nem mais uma linha.

Enquanto somos jovens, a luta pela vida nos arrasta como um maremoto, mas, com os anos, declinamos de muitos de nossos sonhos e lutas.

Pensar que Borges poderia ter refletido sobre o assunto... talvez. Isso não sei. Porém, acreditar que Borges pudesse ter sido o autor desse poema repetitivo, sem metáforas, sem jogos linguísticos, sem pensamento crítico, sem o estilo borgiano, é um pouco de ingenuidade.

A viúva do escritor, Maria Kodama, declarou que teve de ir à Justiça deixar registrado que o texto não era de Borges e que ela, como sua herdeira, se negava a receber os direitos autorais dele advindos.

Esclareço que eu gostei da mensagem, mas seria muito estranho atribuí-la a Borges. Lembremos que ele mesmo afirmou: "Não criei personagens. Tudo o que escrevo é autobiográfico. Porém, não expresso minhas emoções diretamente, mas por meio de fábulas e símbolos. Nunca fiz confissões...".

Borges nunca gostou de elogios diretos. A um jornalista que o chamou "um dos grandes literatos de nosso século", Borges respondeu: "é que este foi um século muito medíocre".

Vamos ver a diferença de linguagem, de estilo e de postura, lendo um fragmento de um poema (verdadeiro) de Borges. Você estará de acordo comigo, os estilos são muito diferentes.

As coisas (Tradução de Ferreira Gullar)
"(...) O rubro espelho ocidental em que arde
uma ilusória aurora. Quantas coisas,
limas, umbrais, atlas e taças, cravos,
nos servem como tácitos escravos,
cegas e estranhamente sigilosas!
Durarão muito além de nosso olvido:
E nunca saberão que havemos ido."

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pela autora. Originalmente publicado no seu blog, Falando de Literatura.


Isabel Furini
Curitiba, 24/8/2010

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Mais Isabel Furini
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COMENTÁRIO(S) DOS LEITORES
24/8/2010
18h44min
Parabéns, Isabel. Como sempre, inovando e esclarecendo. Acontece que milhares de textos andam pelo mundo assinados por vários autores. Continue assim e sucesso no blog. Abraços.
[Leia outros Comentários de Angela Reale]
25/8/2010
21h16min
Acredito que Borges, fã que era de H.P. Lovecraft e seus livros apócrifos, ele mesmo tendo inovado ao escrever ensaios sobre livros que não existiram e até a história de Pierre Menard, veria com bom humor essa confusão toda. Talvez até concordasse com a poeta que afirmou que o poema era mesmo de um Borges que teria se arrependido depois - só pelo efeito. Típico do mestre.
[Leia outros Comentários de Noah Mera]
30/8/2010
14h31min
Leitura deliciosa. Além de elucidar a não autoria do poema, faz a nós, brasileiros, ficarmos mais curiosos sobre Borges, maravilhoso escritor argentino que nos é pouco conhecido (fora dos meios literários). E além do mais, justiça seja feita, como já diz a Bíblia: "dai a César o que é de César".
[Leia outros Comentários de Alessandra Magalhães]
30/8/2010
16h09min
Sempre me incomodou essa atribuição do "Instantes" a Borges. Seria a negação de toda uma vida criativa, o repúdio tardio à sua própria obra. A comparação entre os dois poemas mostra que "Instantes" não é de Borges. Por outro lado, caso "Instantes" fosse obra psicografada, ela teria as mesmas qualidades das obras pós-vida de autores famosos, recebidas por médiuns espíritas. Os críticos apontam que o "plano astral" ou "espiritual" faz muito mal ao estilo dos artistas, ficando praticamente irreconhecíveis.
[Leia outros Comentários de José Frid]
6/9/2010
10h41min
Cada vez que alguém reforça a verdade de que este texto de autoajuda não é de Borges, fico feliz. Talvez o poeta se divertisse com esta confusão, uma vez que ele próprio usava a dúvida como estilo literário. Mas para seus admiradores é irritante alguém acreditar que este amontoado de clichês fez parte da sua obra. Parabéns à autora pelo texto e por nos devolver um fragmento, este verdadeiro, do grande mestre argentino.
[Leia outros Comentários de Helena]
7/9/2010
09h03min
Excelente artigo de Isabel Furini. Vou ler mais coisas de Borges, depois dessa aula magna... Parabéns.
[Leia outros Comentários de Valdeck Almeida]
7/9/2010
10h49min
Um belo texto sobre o Borges. Agora, esse poema está mais para Pedro Bial! Descadaramente não é do Borges. Penso aqui comigo: tenho visto dezenas de poemas assinados por Drummond, Bandeira, Cecília etc., correndo pela rede que são de autoria duvidosa...
[Leia outros Comentários de L Rafael Nolli ]
7/9/2010
11h13min
Finalmente alguém revela esse fato. Desde a primeira vez que li o poema desconfiei desse tomaria mais sorvete e menos lentilha que decididamente não combina com ele.
[Leia outros Comentários de J MAURICIO GUIMARAES]
7/9/2010
14h18min
Isabel, parabéns pela peneirada crí­tica no texto "Instantes". O bom dessa história toda é que o poema é bom. Não fosse, não seria atribuído a Borges. Sua autoria, no caso, pouco importa. Importa apenas saber que tivemos Borges, que "assina" até poemas nossos, como querí­amos fossem seus.
[Leia outros Comentários de Gildemar Pontes]
7/9/2010
19h09min
A discrepância é óbvia mesmo. Como aquele texto "Mude" que foi atribuído a Clarice Lispector (qualquer pessoa com o mínimo de bom senso percebe que ela JAMAIS escreveria aquilo); mais tarde foi reconhecido o verdadeiro autor: Edson Marquez. Enfim, o mundo literário é cheio dessas coisas, desde os primórdios: será que William Shakespeare realmente pisou sobre essa terra? "Maktub" já existia antes de Paulo Coelho? Quem foi que escreveu a Biblia, mesmo? Ah, sim, sinto muito, mas aquele "Filtro solar" também não é do Bial...
[Leia outros Comentários de Camila Silveira]
8/9/2010
18h17min
Excelentes esclarecimentos da Isabel. Concordo com a opinião da Camila Silveira e acrescento que o mundo virtual é cheio de textos cuja autoria é atribuída a autores famosos e que não tem nada a ver com eles. Também encontrei uma "preciosidade", o livro "O Aleph", de Paulo Coelho. Mas não é que o Jorge Luis Borges também escreveu um livro com esse título? Donde concluo que Paulo Coelho adora o Borges...
[Leia outros Comentários de Luzia Helena ]
8/9/2010
19h10min
Não dá mesmo para atribuir este poema a Borges, e quase acho engraçado visualizar a Sra. Kodama recusando-se a receber os direitos autorais, rsrsrsrs!!! Mas serviu de matéria-prima para um belo ensaio por parte de nossa cara Isabel! Destarte os questionamentos sobre o valor literário, a falsa atribuição do poema dá margem a uma situação que o próprio autor poderia abordar em um de seus contos...
[Leia outros Comentários de Adalgiso Junior]
30/12/2013
10h47min
Mas Don Herold morreu com 77...
[Leia outros Comentários de lisandro do amaral]
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