Nos queda una aventura: viajar para desaprender. (Abraham Ortiz Nahón)
Os dias de asteca em Puebla terminaram para Javier: a orelha pintada não era sangue, mas tinta vermelha de sua caneta que vazara enquanto autografava ― o livro apoiado na parede ― meu exemplar de Humedales. Após a leitura no pátio interno da Casa do Escritor, ele me mostra com ar divertido não só a orelha, como também as folhas do livro e as próprias mãos manchadas. E assim, imaculado, ficaria até a volta à Cidade do México. No entanto, o radialista do programa Operación Periodística, da rádio Diez diez, perdera este furo e ainda a chance de deturpar a notícia ― "Poeta é ferido na orelha" não foi a manchete da suposta gravação, que bem poderia ter sido "Poetas esperam por uma hora para serem entrevistados por rádio mexicana". Está claro que não era de raiva que a orelha estava vermelha. Mas o radialista sequer perguntou: o que se passa em suas entranhas?
Um Navigator dourado nos recebe como reis de países distantes. Saímos do centro velho e alcançamos uma área periférica, viadutos e vulcões à vista no céu serrilhado de nuvens. Na entrada do moderno prédio passamos por um forte esquema de segurança. Nem sequestradores, nem terroristas, não queremos briga, somos todos de uma ingenuidade alva como o creme de rosas Sanborns. Há cheiro de limpeza no ar, uma mosca jaz no parapeito da janela. Javier me dá uma sugestão de apresentação aos ouvintes, "soy Elisa, soy blanca y no sambo". A luzinha vermelha "no ar" intimida e dá a dimensão do nervosismo de uma rádio funcionando, mas estão todos à vontade no aquário:
― Queria perguntar à poeta brasileira: qual o estado de saúde da poesia brasileira hoje em dia? Depois de... em México já não sabemos o que acontece no Brasil, paramos em figuras como Murilo Mendes, Haroldo de Campos, como em Drummond de Andrade, que era mais narrador, não?
― Poeta também, poeta e cronista.
― Como que paramos nesta época, não? O que mais aconteceu?
― Muita coisa... aconteceu muita coisa. [risos]
― Um século!
― Todos estão todos mortos, estes.
― Sim, eu sei, sim, mas não temos mais notícias de poetas brasileiros...
Quizá porque desde la primera gota, en el perfume fermentado, un dios terrestre imaginó libación y doncella en un mismo odre. (Mónica Nepote)
Mas a mancha vermelha na mão de Héctor Hernández Montesinos era, de fato, sangue, ferida recém-aberta. A marca nas páginas brancas de NGC224 só poderia ser o carimbo da própria incisão. Fôramos recebidos em mais uma roda de leitura, desta vez em Cuernavaca, no Museu Casona Spencer, com a hospitalidade de Rocato, Nayeli, Armando e o público presente. Ele está ao meu lado na mesa de leitura, cabelos desgrenhados, olhos em bruma, um fino cachecol pendendo do pescoço com displicência. Há pintas grandes em seu rosto branco como estrelas aleatórias. Quando nos levantamos reparo que ele parece mais baixo do que é, não se sabe a origem de tal altura inédita. A coqueluche de Santiago, Héctor, está morando no México e empolgado com seu novo projeto de caravana poética. Quando é tempo de as revistas literárias fecharem as portas, os festivais perderem um pouco o ânimo pela sucessão dos anos e os apoios rarearem, surgem novas ideias, como essa que ambiciona percorrer toda a América. E, por que não reavivar a chama, trazer a nós mesmos a noção de que continuamos vivos?
Deixamos a Casona e nossos anfitriões nos conduzem pelas ruas de Cuernavaca, uma cidade pequena e alegre conhecida por sua movimentação artística. Mal chegamos e o espetáculo da vida domingueira começava como se nos aguardasse: na profusão de cores da praça principal, ondulações de bolhas de sabão, a banda e o coreto são o centro de seu sistema, cuja música poderia ser qualquer uma, mas era e tinha que ser dançante. Me aproximo de uma das bancadas de comidas típicas e, entre doces de leite e pêssegos cobertos de pimenta, chamam minha atenção finas circunferências empilhadas, algumas grandes, outras pequenas, beges ou de cores variadas, todas à base de farinha. Pois os mexicanos são tão bem resolvidos com sua religiosidade que, além de festejar os mortos, comem hóstias coloridas. Provarei da minha, entretanto, na volta para casa. Tudo aquilo merecia um resumo, um registro, então, deixamos mais uma vez nos levar pela euforia de estar num país desconhecido e posamos defronte um cenário decrépito de México pré-independente, com chapéu e cavalos brancos; a praça toda olhando os forasteiros fantasiados de mexicanos. "Mira, um grupo chino", o fotógrafo me mostra a imagem de um grupo tão risível quanto o nosso deveria estar, enquanto a impressora nos regurgitava a intervalos de camadas de tinta colorida, devolvendo-nos aos poucos em cores ao mundo.
Pensar na poesia brasileira, hoje, é ver a desvalorização do poeta, que virou uma farinha, desvalorizado no contexto acadêmico, ou seja, ninguém conhece um autor brasileiro vivo, nos meios culturais, nas editoras, e na internet todo o poeta é igual areia, num universo que precisa de encantamento. Não há programa pra isto. Há público em desorientação, necessitando da boa poesia.
Poesia brasileira atual nem o Brasil sabe, quanto mais os outros países latinos americanos. Existem pessoas como Floriano Martins fazendo um esforço hercúleo para aproximar as Américas hermanas, mas diante do poder de obliteração da grande mídia fica muito complicado. Além dos confrades que falam só de si, e de seu grupelho, não lendo nada que só repita o que já fazem. A poesia respira a despeito de nós.