"Oh! a vida é um abismo! mas fecundo!
Mas imenso! tem luz ― e luz que cegue.
Tem harmonias, que parecem sonhos
De algum anjo dormido; e tem horrores
Que os nem sonha o delírio!"
(Antero de Quental)
O filósofo sul-rio-grandense Gerd Bornheim (1929-2002) iniciou sua carreira de professor universitário na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde manteve-se até ser expulso pelo regime militar. Exilado na Europa, viveu na França e na Alemanha entre 1970 e 1974. É reconhecido introdutor e especialista do pensamento existencialista de Heidegger e Sartre no Brasil. De volta ao país, passou a lecionar na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Seus estudos abrangeram a filosofia, as artes e o teatro. Escreveu diversos livros, entre os quais Aspectos filosóficos do romantismo, O sentido e a máscara, O idiota e o espírito objetivo, Sartre: metafísica e existencialismo e Metafísica e finitude.
Escreveu também Introdução ao filosofar ― O pensamento filosófico em bases existenciais (Globo, 2009, 168 págs.), objeto desta coluna. Esta obra de Bornheim originou-se de sua tese de livre-docência escrita em 1961. Exclua-se a hipótese de mais um manual de iniciação ou divulgação do assunto. Trata-se de uma investigação a respeito da causa inicial, do primeiro impulso que leva o indivíduo ao desenvolvimento do pensamento filosófico. Bornheim menciona o "comportamento originante" e adota perspectiva declaradamente existencialista, indicando que seu envolvimento com a corrente filosófica não dependeu de seu exílio. Por ser trabalho acadêmico, o filósofo expõe metodicamente seu raciocínio, citando as fontes e encadeando-as na construção do raciocínio. Apesar disso, não é uma leitura árdua, mas um bom exemplo de que se pode citar e incluir notas de rodapé sem ser mal-educado com o leitor.
Em síntese, Bornheim investiga o que levou cada filósofo a filosofar. Neste ponto, o trabalho foi-lhe dificultado pela ausência de material, pois nem todos os filósofos de relevância deixaram cartas ou diários explicando o que os levava ao pensamento especulativo. Por outro lado, si ele não rejeita o conhecimento da "unidade cultural" em que cada um viveu, evita a substituição pelo determinismo sócio-histórico: o pensamento de Maquiavel é fruto da Florença quatrocentista. Bornheim defende a perspectiva historicista suficiente e saudável para entender por que este pensador escreveu O príncipe e não O presidente ― embora tenha sido e seja lido pelos dois.
Gerd Bornheim
Na ausência de fonte que esclareça a gênese do pensamento filosófico, Bornheim retoma o arquétipo do "milagre grego", identificando duas dificuldades para explicá-lo. Primeiro, pode-se insistir na especificidade e pureza da cultura grega, e explicar o grego pelo grego. Trabalho vão, pois sempre haverá pontos obscuros e não explicados pela exclusividade dos estudos helenistas. Além disso, a história e a antropologia rejeitam culturas de estufa, o que nos leva à segunda dificuldade. Se explicarmos o grego pelo "pré-grego" e até pelo "extra-grego", que caminho seguir? Dada a inviabilidade de definir a causa geral, Bornheim procurará em suas páginas identificar no indivíduo o comportamento ou as condições existencialistas do filosofar.
Restrita a pesquisa ao âmbito individual, o filósofo procura entre as três atitudes básicas sugeridas por Karl Jaspers aquela que responde melhor à questão. Segundo Jaspers, o impulso filosófico inaugural pode ser encontrado na admiração ― conforme Platão e Aristóteles definiram-na ―, na dúvida metódica de Descartes ou na insatisfação moral de Epiteto. O estoico romano é o último a ser mencionado e o primeiro a ser rejeitado, com o objetivo impedir a confusão entre Filosofia e moralismo. A dúvida metódica pode ser uma necessidade para lidar com a saturação do conhecimento, mas não a causa buscada. Interessa à Filosofia a dúvida que organiza e limpa o espírito dos seixos de erro e de superstição, não a dúvida sistemática, própria do cão que morde a própria cauda e sai rodando sem chegar a lugar algum. Não plenamente satisfeito, Bornheim seleciona a admiração como motor do primeiro despertar "face a uma realidade que será pensada pelo filósofo". Qual realidade?
Neste livro, si o transcendente não é rejeitado, também não é privilegiado. Como rejeitamos racionalmente a dicotomia entre o natural e o sobrenatural, entendemos que cada filósofo, em suas perquirições, debruçar-se-á sobre aquela parcela da realidade que conseguir vislumbrar. Se o filósofo fala em admiração, de nossa parte, adotando a postura reencarnacionista, preferimos falar em maturação. Para admirar-se, não é necessário maturidade? De certa forma, mas pensamos que a admiração segue-se à evolução do espírito como o fruto segue à flor. Bornheim dedicará esta obra a compreender a admiração como oriunda da experiência negativa.
Antes de falar sobre a experiência negativa, é importante lembrar que, para Bornheim, o estado primitivo do sujeito é sua imersão e confusão com o mundo, caracterizando o que será chamado de comportamento dogmático. Desta forma, todos estariam de tal forma adaptados ao mundo que com ele se confundiriam. O momento da admiração seria a primeira abertura, o instante em que o homem descobre a realidade que o transcende, sendo esta transcendência algo que apenas supera a realidade limitada pela visão cotidiana. A abertura causada pela admiração faz o homem continuar a viver no mundo, disponibilizar-se para ele, porém sem acreditar-se mais como peça de seu mecanismo. Sem condicionantes e moderadores epistêmicos predeterminados, o sujeito está no mundo e consegue conservar sua individualidade.
A ausência de condicionantes não exclui de roldão todo espiritualismo e toda hipótese criacionista? No contexto da obra, é bem provável. O texto do filósofo é apartidário, mas si concordarmos com aqueles que dizem que a opção revela a disposição, somos forçados a entender que o indivíduo é isolado e assim mantido, para nele, e somente nele, procurar o que esteja mais perto de seu alfa e de seu ômega, bem como o salto qualitativo caracterizado pela admiração. A exacerbação do ateísmo, do agnosticismo e do ceticismo são doenças do espírito contemporâneo sintomáticas do estado de prostração espiritual decorrente dos dois principais conflitos mundiais do século XX. Notamos, porém, que si os filósofos, cientistas e escritores mais capacitados firmam-se na postura de rejeição ou de não-exposição, configura-se a compensação platônica encontrada n'A república: quando os melhores negam-se a agir, cedem espaço aos menos qualificados. Por isso a edição de um livro de autoajuda atinge milhares de exemplares, ao passo que livros de filosofia restringem-se praticamente ao público acadêmico e entusiastas. O cidadão médio e cultuador do senso comum procurará algo que lhe dê estímulo e conforto, ainda que dentro de parâmetros materialistas e imediatistas, não o que lhe dá apenas caspa.
Voltando a Bornheim, pode-se entender que o contato com a realidade é progressivo e, iniciado, não há como retroceder, pois as antigas concepções tornam-se sufocantes para o entendimento dilatado. Conforme a comparação feita por Arthur Schnitzler em outro contexto, subindo-se por uma montanha, o que se julgava o cume era um lado que escondia o verdadeiro pico do maciço.
O prosseguimento ao processo de abertura começado pela admiração, que excluirá o homem do mundo que ele acreditava pronto e organizado, não é isento de incômodos. Reconhecendo isto, Bornheim retoma o mito platônico da caverna para ilustrar o trabalho que poderá ter ― e a rejeição que poderá sofrer ― aquele que resolver abandonar o dogmatismo e a ingenuidade. Enquanto ingênuo e pré-crítico, o sujeito enquadra-se na tese tridimensional de Husserl. Na dimensão gnosiológica ― referente àquilo que podemos saber ― o mundo não resiste ao conhecimento, ele é do jeito que se apresenta. Na dimensão ontológica, o ser não questiona sua origem e fim. Enfim, na dimensão axiológica ― respeitante aos valores ―, a realidade tem um valor objetivo e imanente que foge à especulação. Após suas investigações, o indivíduo abala os fundamentos desta tese geral e vulnera sua sustentação, transferindo-se do dogmatismo ao criticismo. Convencido do que o mundo não é, resta-lhe buscar o que ele é.
Bornheim afirma que a tese geral também é intocada pelo conhecimento científico. A ciência, segundo ele, aceita a tese geral e trabalha a partir dela. O cientista não questiona a existência do objeto de seu estudo, sob pena da inviabilidade de prosseguir com seus esforços. O astrônomo não questionará o foco de luz percebido no espaço, mas investigará si esta luz é emitida por um astro ou refletida por outro. Passe a questionar a própria luz ou a validade do conhecimento a seu respeito, deixa de ser astrônomo e passa a ser filósofo.
Buscar o que o mundo é. Aqui as respostas variam conforme o filósofo questionado e o entendimento por ele esposado. Para o iniciante, é questão séria, da qual dependem sua liberdade e sua maturidade. Lembramos do personagem de Sidarta, de Herman Hesse, quando conseguiu falar com Buda após longa peregrinação em seu encalço. Diante do mestre, entendeu ser mais sábio rejeitar seus ensinamentos, pois condicioná-los em seu espírito e aplicá-os em sua vida sem tê-los vivenciado faria-o repetir-lhos passos sem acrescentar nenhum. Filosofar conforme o outro, seja qual for a autoridade moral e intelectual deste outro, equivale a pedir que olhe por nós, autorizar que determine o que podemos ver e como. Mesmo nos meios pretensamente mais esclarecidos, notamos uma vergonhosa atitude de ignorância calculada: se não sabemos, não nos responsabilizamos, não ofendemos. A fonte primária de reflexão filosófica é o mundo e a vida que nele habita. Deter-se sobre o pensamento de outros filósofos ― que, a despeito disso, podem ser ótimos interlocutores ― é ceder gratuitamente a própria liberdade de pensar e arriscar-se ao monoideísmo perigoso. O medo de ousar, de saber por si, de errar e desagradar explica muita dedicação ao pensamento alheio. Teses eruditas podem acabar revelando autores filosoficamente pobres.
Com isto, alcançamos o conceito de "vida filosófica" mencionado por Bornheim, mas deixado em aberto. Que vida é esta? Partindo do singelo raciocínio que envolve a formação do termo ― phylos, amor; sophia, conhecimento ― e sabendo que o ser humano jamais abandonará o processo de aprendizagem e de crescimento cognitivo, afirmamos que a vida filosófica é aquela dedicada à agregação contínua de conhecimentos que permitam a gradual e progressiva percepção do mundo e de nossa inserção nele. A experiência negativa definida pelo filósofo tem grande validade, visto que o sujeito pode chegar a certa altura de sua vida com mais ilusões do que conhecimentos, mais certezas ingênuas que aprendizado encaminhado.
A certeza que temos é que todo o processo filosófico nasce de uma necessidade: a do pensar. O ser humano é um ser causador, pensante. E ninguém pensa em estacionar o seu veículo em alto mar nem sentar-se no vazio do espaço. Portanto, o filosofar nasce da concretude da vida. A erudição científica vem com o processo laboratorial a partir da escrita, da busca cartorial, editorial, da pesquisa do processo de entrevista do trabalho de campo, e tudo isto tem o objetivo e objeto de estudo, que em última análise chama-se necessidade humana.
Fala-se muito a respeito da condição humana. É interessante como os pensadores existencialistas colocam em questão o pensamento dogmático e o método cartesiano, dado que o mundo não está pronto, mas em um processo de evolução espiritual, que por sua vez, vai ser sempre um vir-a-ser.