Qual é a relação entre a mente e o cérebro? A mente, que abriga nossos dilemas, nossa imaginação, catalisa nossas emoções e compõe nossos poemas, músicas, escreve textos, é fruto dessa massa esponjosa que carregamos no crânio? Até que ponto o cérebro, com suas sinapses e milhões de neurônios, influenciam ― se é que influenciam ― o nosso ato de pensar? Essa é uma questão que envolve a investigação de vários ramos da ciência como a neurociência, a psicologia e a biologia molecular, além de outras. Há estudos surpreendentes acerca do tema que podem, se comprovados (e estamos bem perto de uma comprovação), causar uma revolução de grandes proporções para humanidade.
O tema é a espinha dorsal de A ilusão da alma (Companhia das Letras, 2010, 256 págs.), mais recente livro de Eduardo Giannetti da Fonseca, cujo personagem principal é um professor de literatura especialista em Machado de Assis. Enquanto proferia uma palestra, o professor notou um lapso de memória que passou a ser recorrente. Ao se submeter a uma bateria de testes, descobre que tem um tumor cerebral. A cirurgia para a sua retirada deixa-lhe uma sequela: a perda parcial da audição. Mas, além da perda auditiva, o professor passa também a não suportar ruídos. Sua única opção é se isolar. E é o que ele faz. Ele se fecha em sua casa entre os livros e passa a se dedicar à filosofia, à investigação incessante e criteriosa da relação entre mente e cérebro. O seu lema, nas palavras de Giannetti, é "a curiosidade está para o conhecimento como a libido está para o sexo". O professor quer apenas conhecer. Não é pouco.
A relação mente-cérebro não é uma questão simples, ao contrário do que se imagina. Como é que o cérebro (realidade objetiva; órgão esponjoso e palpável) se liga à mente (realidade subjetiva, detentora virtual de pensamentos, sentimentos e memória) ― ou vice-versa? O professor descobre que há na história da filosofia duas correntes de pensamento. Há a corrente "fisicalista", os que julgam que o cérebro prevalece sobre a mente ("a alma que olha de fora para dentro"); e há também a corrente "mentalista" ("a alma que olha de dentro para fora"). Ressalte-se que a mente é também a alma (do título), como afirmavam alguns filósofos.
O que vem primeiro: um estímulo cerebral ― provocado por bilhões de neurônios ― que guia o nosso pensamento ou a força imaginativa e voluntária da mente que interfere no cérebro? Temos um ponto de partida. Sabemos que o cérebro, segundo Giannetti, "despista a mente", ou seja, a estimulação elétrica em algumas regiões do cérebro produz sensações visuais, auditivas, olfativas etc. Mas isso é pouco para o nosso professor-filósofo. Ele quer saber mais. A própria estrutura narrativa do livro retrata como se dá esse embate. O autor intercala pensamentos do professor (fluxos de consciência) com textos filosóficos (aparentemente anotações feitas ao longo do estudo).
E essa forma narrativa merece um aparte. A ilusão da alma é classificado como um romance. Mas ele não é somente um romance. É também ensaio. Como é também um livro filosófico. E se formos observar a arquitetura sublinear do texto teremos um excelente manual de como se constrói o conhecimento. Essa mania de rotular os livros trata-se, aparentemente, de uma exigência mercadológica, para colocá-los em alguma estante (negócios, ficção, artes). Existem vários autores que surfam, em suas narrativas, pelos mais diversos estilos (difícil classificar os livros de Nuno Ramos, por exemplo). Essa versatilidade parece se intensificar em nossos dias diante das várias possibilidades de acesso e utilização da informação, principalmente com a internet.
Eduardo Giannetti também parece usufruir dessas diversas possibilidades. Seus primeiros livros (As partes e o todo e Nada é tudo) são coletâneas de ensaios e artigos publicados em jornais, abarcando uma infinidade de temas como economia, ética, história das ideias, política e globalização. Os textos têm rigor filosófico, mas são extremamente acessíveis, cujas leituras são um deleite. Já as obras Vícios privados, benefícios públicos? e Auto-engano são mais voltadas para a economia e filosofia.
A ilusão da alma é irmão, creio, do não menos interessante Felicidade, quando se inicia um flerte do escritor com a ficção. Neste, o autor cria quatro personagens totalmente diferentes ― em ideologia, profissão, comportamento ― como pano de fundo para investigar as várias facetas da felicidade e suas implicações ao longo da história da humanidade. Enfim, A ilusão da alma merece uma classificação mais abrangente, talvez como "romance-filosófico", "ensaio-ficional"; ou simplesmente "romance/ensaio/filosofia".
Mas retornando ao enredo do livro, após se enfurnar nos estudos solitários, o nosso nobre professor chega aos mais atuais estudos da neurociência, que defendem uma surpreendente supremacia do cérebro em relação à mente. Nas palavras do autor, "o processo que culmina numa ação aparentemente voluntária [nossa] tem início no cérebro de modo pré-consciente, antes que a intenção de agir aflore ao espelho da mente (...) o cérebro é responsável sozinho por todas as nossas ações". A constatação prova que há uma ilusão da alma, qual seja, a de que ela tem o poder de coordenar as nossas ações. Temos a ilusão de que temos livre-arbítrio. Essa supremacia cerebral teria, segundo ilustra bem o autor, influenciado diretamente na decisão de Sócrates de não fugir à sua condenação ― como ele teve oportunidade de fazê-lo ― e beber a cicuta que o mataria.
As recentes descobertas ― passando agora do plano da ficção para a vida prática ― podem implicar em consequências alarmantes no campo da economia, por exemplo, no que tange ao mapeamento (cerebral) do nosso comportamento como consumidores. Enquanto vacilamos entre comprar ou não determinado produto, o cérebro já tem a decisão. E que tal um mapeamento do direcionamento dado pelos nossos cérebros sobre as nossas preferências políticas nas eleições?
A ilusão da alma, além de ser um compêndio filosófico e um romance de agradável leitura, levanta questões para seguirmos refletindo. De certa forma, o livro nos desperta para um debate ético-científico. Além disso, Eduardo Giannetti nos dá uma aula sobre como elaborar o conhecimento ― em momento oportuno, diante dessa enxurrada de informações diante da qual estamos ainda desorientados. O autor demonstra que a filosofia ― ou o ato de filosofar ― está acessível a qualquer um, inclusive de maneira interdisciplinar. Há um constante diálogo em A ilusão da alma entre os mais diversos campos do saber, como a neurociência, a biologia, a inteligência artificial e, claro, a literatura, nas palavras e no pensamento de Machado de Assis, Diderot, Dostoiévski, Rilke e Fernando Pessoa. Todos no exercício da alma, mas a serviço do cérebro.
Nota do Editor
Wellington Machado de Carvalho mantém o blogEsquinas Lúdicas.