Esqueça as baixarias escritas nas portas de nossos banheiros públicos e imagine-se na Universidade de Harvard. Foi em um deles que surgiu o grafite: "Deus morreu. Assinado: Nietzsche". Alguns dias depois, alguém atestou embaixo: "Nietzsche morreu. Assinado: Deus".
Com essa história gaiata, o escritor e diretor da biblioteca de Harvard, Robert Darnton, iniciou sua resposta à inevitável pergunta sobre a morte do livro, que abriu o segundo debate sobre o tema na última Festa Literária de Paraty (Flip). "Com a morte decretada tantas vezes, certamente o livro vai continuar vivo", concluiu, para seguir adiante em questões mais prementes para a indústria do livro, como a dos direitos autorais e o poder do Google na era digital.
Não, o livro não vai acabar; sim, a digitalização já é uma realidade, concordaram Darnton e John Makinson, CEO do Penguim Group, na ocasião. Era a minha primeira Flip, eu estava mais interessada nos debates com escritores de ficção, e andava saturada da guerra travada entre adoradores-do-cheiro-e-da-textura-do-papel versus adoradores-de-toda-e-qualquer-nova-tecnologia. Mesmo assim, acabei despertada para alguns aspectos que, até então, me pareciam pouco explorados apesar (ou por causa) do excesso de ruídos.
O primeiro é o impacto que o livro digital causará (e provavelmente já está causando) na experiência de leitura. Tudo leva a crer que o leitor do futuro acabará abrindo mão da experiência "ponta a ponta" de um livro, e do tipo de aprendizado que ela proporciona, em prol de uma outra dinâmica de assimilação de conteúdos escritos na qual pontos de interesse prévios são facilmente localizados.
Isso já acontece hoje com as notícias na internet, onde o leitor pode atualizar-se apenas sobre "o mundo que lhe interessa", não mais conduzido por um editor de jornal que hierarquizava o mundo para ele. Da mesma forma, o leitor de livros não caminharia mais pelas mãos do escritor, do início ao fim do livro.
Assim como convivem, em Harvard, os que acham que Deus matou Nietzsche e os que defendem que foi Nietzsche quem matou Deus, haverá quem julgue superior uma ou outra experiência de leitura. No caso do noticiário, o fim da hierarquização por editores que detinham o monopólio da informação foi festejada: acabou a manipulação. Mas também a possibilidade de ser convencido sobre a relevância de um assunto novo ou de ter uma visão de mundo mais global, menos segmentada.
O efeito colateral da nova dinâmica de disseminação da informação seria o surgimento de internautas que se supõem bem informados apesar de viverem "em microguetos, sem contato com gente que pense diferente",
como citou recentemente o antropólogo Hermano Vianna, a propósito do livro A era do radicalismo, de Cass Sunstein.
Com a facilidade do livro digital, posso comprar (baratinho?) neste instante o livro de Sunstein e buscar, no meu e-reader ou tablet, a parte citada por Vianna que me instigou em sua coluna. Lerei o livro como quem navega na internet, buscando o que acho que já sei, e que por isso me interessa. Terei contato com uma obra que dificilmente conheceria de outra forma, mas dispensarei a mão que o escritor americano oferece a seus leitores nas primeiras páginas, tentando conduzi-lo por algum raciocínio que somente a experiência ponta a ponta de leitura tornará possível compreender em toda a sua dimensão.
Lerei a mim mesma, partindo da minha festejada liberdade, como já faço com as notícias. Busco um espelho, que delineie os contornos das minhas convicções. É para essa experiência individualizada que serve o "personal" computer, não é mesmo?
Se o livro tiver características de uma obra de consulta, estarei economizando meu tempo, graças a esta nova forma de leitura. A dúvida, em relação ao leitor do futuro, é se esse novo hábito não o afastaria definitivamente da experiência proporcionada por um romance social de 600 páginas que, além de concentração e esforço, exige uma postura de abandono nas mãos do autor. O leitor precisa sair do comando, esquecer o "buscador" que transforma o mundo na "sua cara", para se lançar, sem interesses ou ideias prévias, no mundo que o escritor irá lhe descortinar. Um tipo de interatividade única com o mundo das ideias, mas que irá afastá-lo da outra interatividade, mais óbvia, piscando em seu celular.
Suponhamos que a minha preocupação, no entanto, parta de um preconceito em relação à dispersão dos novos leitores, e que a mente multitarefa consiga, sim, concentrar-se em Anna Karenina e usufruir de uma obra que transpõe os séculos. Despidos de preconceitos e convencidos da realidade digital, precisamos agora saber como conservar uma obra de Tolstói em nossas bibliotecas virtuais. A questão da perenidade dos livros, entretanto, foi outra que ficou sem resposta no debate da Flip. Com hardwares e softwares se tornando obsoletos tão rapidamente, parece inevitável conviver com o temor de perder obras que julgamos eternas. Darnton mencionou um pesadelo recorrente: o de acordar um dia e descobrir que todos os textos digitais desapareceram da face da terra. Makinson tentou tranquilizá-lo: certamente alguém já teria impresso aquele texto em alguma parte do mundo.
E assim voltamos a falar da segurança do papel... Como os visitantes da Flip não são colecionadores de papel nem de gadgets, o debate sobre o futuro do livro subitamente me parece tolo. Nas ruas de Paraty, uma multidão enfrenta e desfruta do solo e do clima instáveis para ter acesso ao que realmente lhe interessa: as ideias por trás dos livros. Observo o fascínio dos leitores pelo processo criativo dos escritores, como se quisessem desvendar o truque do mágico, descobrir o fundo falso da cartola. E escolho acreditar que novos leitores vão continuar, sim, se deixando conduzir pelas mãos habilidosas dos grandes escritores.
Assim como Robert Darnton, que usou o truque da piada sobre o banheiro de Harvard para iniciar sua exposição, os visitantes da Flip ― em toda a sua diversidade ― sabem que sempre haverá histórias para serem contadas, e gente interessada nelas. Pelo menos, nas boas e bem contadas.
Nota do Editor
Marta Barcellos mantém o blogEspuminha.
Se lerem "A queda da América", de Allen Ginsberg, verão como um autor trabalhou textos escritos em banheiro a favor de sua obra-prima. E ele foi o maior da geração beat americano.
Excelente artigo, Marta. É exatamente isso. Como sempre acontece quando surgem novas tecnologias e suportes para os produtos culturais, perde-se de um lado e ganha-se de outro. Ainda é cedo para termos certeza do que vai dar... Estou lendo no iPhone "O amante de lady Chatterley" (indo e voltando do trabalho) e me surpreendi comigo mesma, pois me pego tão mergulhada como fico com um livro impresso. Pensei que não fosse conseguir, mas olha aí!
Embora seja uma grande adepta dos livros impressos, acho que, nesse caso, a grande questão não é como leremos o livro no futuro - se físico ou virtual -, mas sim se ainda teremos os livros, e se eles ainda terão a relevância que sempre tiveram para a humanidade. O meu grande receio é que, nesses tempos de informação rápida e superficial, os livros acabem se tornando algo irrelevante para a futura geração de leitores...
Eu não acredito que esse tipo de coisa possa acontecer, ao menos, não comigo. Jamais compraria uma obra pra ler apenas o que me interessa, afinal, uma obra é um todo que só se faz entender se lido de cabo a rabo. Não faz sentido comprar um livro, em papel ou em bytes, e não querer entender a idéia que o autor quer passar. Quem faz isso tem é preguiça de ler, e de pensar.
Hoje o mercado, dizem, só é possível vender melhor, se o livro tiver entre trezentas e quatrocentas páginas, vejam só. Para os grandes conflitos, eu digo, não dá para falar sobre uma única família, sendo uma saga. Bem, o mercado manda ou o escritor deve escrever para quem gosta de ler? Eu mesmo respondo. Para quem gosta de ler, escarafunchar todo ele, dar palpite, empolgar-se com a trama... Enfim, disputar com o autor o direito de pensar e refutar alguns argumentos, sentimentos e por aí vai. Tem os outros, para os preguiçosos, com bastante fotos e desenhos. Nâo, não é infantil, não. Coisa horrível de se comentar, mas é assim mesmo. Não é sempre que somos agradáveis. Abraços!