Tenho à minha frente cerca de setecentas páginas de puro Dostoiévski. A edição é linda, em dois volumes. Uma verdadeira obra-prima do mercado editorial. O cheiro ― aquele perfume que só os bibliófilos sabem apreciar com o mesmo prazer que um enólogo sorve os bons vinhos ― é bastante apreciável. Uma boa safra, posso dizer. Abro as páginas. Bom papel, boa textura, boa confecção. Tudo digno de um livro novo. Tudo, até mesmo o conteúdo: só há Dostoiévski, e nada mais.
Sou bibliófilo assumido, adoro livros. Mas, para continuar na analogia, da mesma forma que os degustadores de vinho podem ter suas preferências por determinados tipos, tenho as minhas. Prefiro os livros usados, já consumidos. Assim, frequento mais os sebos que as livrarias. Entrar em uma livraria é, como muitos já disseram, entrar em um novo mundo, no qual são oferecidas portas para muitos outros mundos, os mais diversos. Mas entrar em um sebo é melhor: as portas que ali são oferecidas muitas vezes trazem, também, boas companhias para as viagens. Além disso, tenho observado que os sebos são refúgio dos livreiros ― os verdadeiros, aqueles que gostam e conhecem, que curtem e apreciam seus produtos ― enquanto as livrarias vêm sendo invadidas pelos simpáticos vendedores de sorriso aberto que, com toda sua solicitude, quase nos enfiam livros goela abaixo, pelo puro ato do vender.
Vou ler Crime e Castigo. Estaremos eu e Dostoiévski, durante um bom tempo, juntos ― ou, como gosto de dizer, conversando. Não tenho a menor dúvida de que o personagem principal, Raskólnikov, me impressionará, pois já conheço alguma coisa da obra. Mas este passeio poderia ter algo mais, aquilo que só os livros usados trazem.
Há algum tempo, comprei o O Xangô de Baker Street, do Jô Soares. Comprei no sebo. Livro já folheado, de manuseio mais leve: amaciado. Na lateral: "Lu". Acredite, leitor: foi a marcação na lateral que me atraiu, a princípio. Peguei o livro na estante, olhei em cima: "Outubro/1995". Levei o livro para casa e, assim que decidi iniciar a leitura, minha companheira de viagem se apresentou: na folha de rosto, a assinatura: "Lucélia 28/10/95". Na página seguinte, ainda antes de qualquer frase do próprio Jô, tornamo-nos íntimos: "Lu" era o apelido que, agora, minha companheira assinava. "Essa gosta de assinar o nome!", pensei.
Primeira página de texto, Jô começa: "Às três horas da manhã, alguns negros escravos ainda podiam ser vistos saindo com barris cheios de lixo e excremento das casas das putas da rua do Regente". Lu havia marcado "podiam ser vistos". Puxou uma seta para o canto da página e foi categórica: "3 verbos? Melhor: eram". No fim da página (ainda a primeira), a constatação de Lu: "Períodos imensos". Sua crítica me divertia.
Assim foi ao longo do livro. Lu revelou-se uma crítica feroz do tipo de escrita de Jô Soares, mas, também, uma consciente apreciadora, já que seus comentários nem sempre eram críticos e sim, por vezes, elogiosos. Também foi uma boa tradutora: o texto possui algumas expressões em francês que Lu, gentilmente, traduzia para mim no canto da página. Minha leitura do Xangô foi, na verdade, um gostoso papo entre mim, o Jô e a Lu. Como três amigos. Críticas, risadas, conselhos, frases soltas. Houve de tudo.
Esse tipo de coisa não é só preferência minha. Lembro-me de ter lido O Príncipe, de Maquiavel, com os comentários geniais de Napoleão Bonaparte. A edição trazia isso, o que mostra que o negócio é vendável. Sobretudo neste caso, com estes dois titãs.
Tenho próximo à minha mesa um mural, onde preguei uma folha com alguns conselhos de leitura e escrita que encontrei na internet e que gosto de sempre estar lembrando. Entre eles: "Ler com um lápis na mão. E usá-lo". Faço isso sempre: ao longo das páginas, faço minhas marcações, minhas anotações. Por isso mesmo digo que minhas leituras são sempre boas conversas com os autores ― acho que Descartes também dizia isso. Mas os livros de sebos são conversas melhores, porque têm vários participantes, cada um com seu momento de falar, sem atropelos, e com a possibilidade de pararmos para fazer as devidas reflexões na medida em que os dizeres nos lancem a isso.
Meu Livro do Desassossego (comprado no sebo), do heterônimo Bernardo Soares de Fernando Pessoa tem uma marcação, feita por um outro companheiro de viagem, sobre uma passagem que trata mais ou menos do que falo aqui. Ao lado da marcação dele, coloquei um baita ponto de exclamação. Assim, quando conversávamos sobre isso, concordamos eu, Bernardo, Fernando e o anônimo amigo que fez a marcação, que é a seguinte: "Regra é da vida que podemos, e devemos, aprender com toda a gente. Há coisas da seriedade da vida que podemos aprender com charlatães e bandidos, há filosofias que nos ministram os estúpidos, há lições de firmeza e de lei que vêm no acaso e nos que são do acaso. Tudo está em tudo. Em certos momentos muito claros de meditação, como aqueles em que, pelo princípio da tarde, vagueio observante pelas ruas, cada pessoa me traz uma notícia, cada casa me dá uma novidade, cada cartaz tem um aviso para mim. Meu passeio calado é uma conversa contínua, e todos nós, homens, casas, pedras, cartazes e céu, somos uma grande multidão amiga, acotovelando-se de palavras na grande procissão do Destino".
Assim, nas páginas lindamente amareladas dos livros de sebos, vou ao encontro de sábios companheiros, para os mais interessantes e marcantes diálogos criativos. O silêncio da leitura é uma conversa profunda, concentrada, entre bons e velhos amigos.
Ivan, que texto delicioso! Descreves com precisão as meta-leituras que também faço ao saborear livros comprados em sebos. São livros com personalidade, com mais de uma história para contar. Adorei!
Eu estranhamente sofro do problema inverso. Não faço anotações nos livros. Em verdade, leio quase sem deixar vestígios de manipulação. Já comprei um livro duas vezes, uma para ler e, logo após o fim da leitura que deixou fortes vestígios, outra edição, para conservar. Terminei por presentear alguém com o livro usado. Já não me servia mais. Provavelmente é patológico. Também não gosto de ler um livro "comentado" por mais alguém. Um intruso na minha percepção. Detesto grifos, anotações, comentários, traduções. O livro, como objeto, é um caminho que devo trilhar sozinho com o autor (sim, há uma contradição nisso). Estranhamente, a leitura em e-books me libertou dessa patologia. Agora leio e faço anotações eletrônicas. Se quiser, posso retirar tudo e ler o texto como se fosse a vez.
O livro é um produto barato para a economias de uns. Mas pra uma miséria que é o salário que recebemos no Brasil, 4 livros que eu compro na livraria já o ordenado do professor. Daí pra frente ele enche a barriga de informação, fica mais culto e morre de inanição.
Curto muito os sebos de BH, pelas razões que descreve no texto: a possibilidade de conhecer gente que aprecia livros, e não apenas vendedores. Mas tem outra coisa incrível nos sebos: os livros ali trazem a possibilidade de te fazer viver a história, e não apenas lê-la. Explico: uma vez achei um cartão de Natal assinado em 1954 em um volume que comprei!!! Não fosse minha preguiça, teria sido algo como "O fabuloso destino de Amelie Poulain"!!! Quem nunca achou papéis ou pétalas em livros?
Eu sempre compro livros no Sebo do Messias, na Praça da Sé. Antes ia até a loja física, mas, com a internet, tenho comprado pela loja virtual. Gosto de livros usados e também aprecio a marcação feita por quem já leu. Tenho um amigo que faz muitas anotações nas margens. Faço questão de ler os livros que ele já leu, para comentarmos depois. É o tipo de coisa que só quem gosta de livros "marcados" entende.