Conta-se que os homens antigos desejosos de conhecer o universo observavam o céu e uniam conjuntos de estrelas com fios invisíveis projetando formas conhecidas. Assim nasceu, por exemplo, a constelação de Escorpião. Nessa constelação eles imaginavam a forma desse artrópode. O homem primitivo imaginava, sonhava, poetizava o mundo. Talvez por isso o refrão: "De poeta e de louco, todo mundo tem um pouco".
A contemporaneidade deu um passo à frente e hoje podemos dizer que: "de blogueiro, de poeta e de louco, todo mundo tem um pouco". Vejamos o caso do Digestivo Cultural, conhecido como DC. O colunista ou colaborador decide escrever uma crônica, ele pode começar com uma notícia de jornal, com a análise de uma frase ou de um livro, mas, para se transformar em crônica, para dar forma determinada ao texto, o escritor precisa unir fios invisíveis das estrelas imaginárias, como os de uma constelação.
O cronista mostrará aspectos diferentes da notícia, poderá argumentar, comentar, ironizar, enfim, estender um fio entre o acontecimento e o modo de vida da sociedade, ou entre o acontecimento e a natureza humana. Esse também é um dos principais objetivos do Digestivo Cultural, tentar colocar ordem no caos dos acontecimentos, nas galáxias culturais. Observar a cultura do ângulo de quem escreve pelo prazer de escrever. Dos apaixonados pelas letras.
Já são dez anos de forte paixão. De lutas, estratégias, caminhos... alguns socos no nariz, não duvido, e reconhecimento também. Como bem falava Platão, a vida é uma mistura do um e do outro.
Por exemplo, eu "curto" as crônicas de Gian Danton. Achei corajoso ele defender Paulo Coelho ("O mago"), o escritor mais esculhambado do Brasil; corajoso também revelar aquilo que a maioria conhece, mas raramente confessa: "O ódio on-line"; aplaudi, também, a coluna "Glauco: culpado ou inocente?", onde Gian, como um novo Quixote, arremete contra os gigantes e corajosamente dá um chute (falei chute, mas para ser honesta estou pensando em pé-na-bunda) ― contra a novelinha cor de rosa que a imprensa inventou com referência a um assassino, o Cadu, jogando a culpa no chá do Santo Daime, como se todos os que tomam esse chá saíssem por aí matando pessoas. E isso nos faz refletir sobre o fato de que a imprensa pode criar heróis falsos, cultuar falsos ídolos, ou seja, muitas vezes, a imprensa entorta o caminho da informação. E de repente um cara decide falar uma verdade e o DC publica, assim, sem cortes...
Isso ajuda a também refletir sobre a condição do homem, que, como já disse Nietzsche, balança sobre uma corda tendida no abismo, ou, como afirmou Hume, está sempre entre a saúde e a doença, entre a alegria e a tristeza, entre o amor e o ódio, entre a vida e a morte. Seres humanos balançando sobre uma corda podem ter uma vida sem tropeços, sem assuntos irresolvidos, sem traumas? É nesse momento que o homem, ser social, participante de uma sociedade que pune os membros mais fracos (ninguém gosta de obesos, velhos caducos, nem pessoas com problemas, a maioria é gentil com eles, mas zombam deles quando os holofotes são desligados), expõe o lado escuro.
E isso revela muito do homem atual, que é um desconhecido mascarado. São muitas máscaras e uma das mais convincentes é a máscara "pessoa bem resolvida ou completamente resolvida", quase inumana, digamos. Um ser humano para ser "completamente resolvido" deveria estar morto, brinca um cronista. Porque a cada passo surgem novos problemas (desculpem, sejamos mais otimistas: surgem novos desafios). Esse é o modelo positivo do início do século XXI, chamado "o homem bem resolvido". Uma espécie de homem passado pelo Photoshop. Quase uma estrela de novela, que só existe na cabeça dos telespectadores e do roteirista. Sabemos que o verdadeiro homem é aquele exposto no texto "Freud e a mente humana", do editor do Digestivo, Julio Borges.
Hoje "o sujeito bem resolvido" pode estar forte, com sua máscara fortalecida, mas, tarde ou cedo, terá um momento de mau humor, de fraqueza, uma noite mal dormida, uma dor de dente, um pouco de depressão, sei lá... alguma coisa que mostre que ele também é humano.
Talvez por isso sejamos apaixonados por super-heróis, mas Superman e o senhor Spock, nasceram em outros planetas, seus genes são outros ― que não humanos. Podem ser super poderosos ou incapazes de emoções. O senhor Spock nunca teve conflitos entre razão e emoção. Um ser humano incapaz de emoções tem grandes chances de ser um psicopata.
Essa fascinação que exerce a ideia de um sujeito guiar-se só pela lógica, sem reações instintivas, nem emocionais encantava a plateia da época do seriado Star Trek, e o ator Leonard Nimoy, o Dr. Spock, disse em entrevista que recebia cartas de amor de muitas telespectadoras.
Longe do Dr. Spock, o homem de Nietzsche caminhando numa corda tendida no abismo não pode ter uma vida tão simples, nem o homem de Freud, com seu id pulsando para expressar-se e o superego tentando reprimir os impulsos. O ser humano é difícil de entender porque é uma amálgama de emoção e razão. E o Digestivo Cultural muitas vezes é difícil de digerir porque mostra o homem sem máscaras, a vida sem Photoshop como, por exemplo, o chocante "Confissões de um escritor", de Charles Kiefer, onde o autor parece querer acordar os novos autores, esclarecendo que escrever não é só glamour, não!
Mas a vida tem risos e lágrimas. O mundo continua a ser um grande teatro. Pessoalmente, tive um momento de alegria ao ver "Instantes: a história do poema que não é de Borges", de minha autoria, publicado no Digestivo. E até fiquei ansiosa como uma adolescente para ver quantos acessos teria. Ao final, ter muitos leitores não é só um sonho de Paulo Coelho, é um sonho de quase todos os escritores. Ninguém quer falar no deserto, nem ser um Robinson Crusoé. Queremos falar, ou escrever, para seres vivos que pensam, sentem, e podem emocionar-se com nossas ideias. E, em última instância, o sentido do DC é esse mesmo, aproximar o escritor do leitor, para que ambos possam compartilhar da magia de pensar e sentir. A magia de ser humano.
Como é reconfortante ler e saber que não somos os únicos que num mundo de "perfeitos" sentimo-nos muitas vezes diminuídos e solitários. E acho que é só através da escrita é que nos sentimos mais próximos, quando identificamos em uma crônica de outro um sentimento que também é nosso. Parabéns, lindo!