Um aspecto que sempre atraiu muito minha atenção no Contrato Social foi o caráter semidivino que Rousseau atribui ao conceito de vontade geral, por ele cunhado nesta obra. Todo o discurso do Contrato se desenvolve, creio eu, em torno deste conceito, e Rousseau consegue de uma forma mais do que brilhante conformar toda sua teoria política às implicações do mesmo. Em prol da defesa da vontade geral, Rousseau deixa de lado vários aspectos até certo ponto dogmáticos da vida social e política, visando manter uma coerência e uma fidelidade que são paradigmáticos, ao menos para mim, em se tratando de discurso teórico.
A vontade geral, como desenvolvida por Rousseau, é a verdadeira fonte do poder político, que pode estar representada na figura do monarca, dos aristocratas dominantes ou emergir de uma assembléia geral democrática. O poder político encontra sua justificação na vontade geral, sendo sua única função fazê-la cumprir contra o que quer possa contrapor-se a ela. Desta forma, o poder político que foge a este compromisso primordial é, irremediavelmente, um poder degenerado.
O conceito é bastante amplo, e vai agigantando-se cada vez mais ao longo do livro, transformando-se numa verdadeira entidade. As digressões do autor em torno do tema são numerosas e extremamente interessantes. À guisa de exemplo, há uma passagem em que Rousseau afirma que a vontade geral é, antes de qualquer coisa, a vontade de todos. Eventuais discordâncias entre os cidadãos contratantes políticos não representam uma real discordância quanto ao que seja ou não preferível, e sim um equívoco temporário por parte dos discordantes que representam a minoria, sendo que estes muito em breve perceberão seu erro e verão que a decisão da maioria era, sim, a melhor opção.
O exemplo acima referido é um caso extremo, sem dúvida, mas bastante representativo do espírito de total desprendimento do autor em favor de seus conceitos e elaborações. No entanto, me parece que o exemplo mais contundente de como Rousseau abdica de considerações de ordem ética na construção do Contrato é o tratado dado por ele para a questão da religião. Religioso, porém não adepto de nenhuma igreja particular, Rousseau distingue três tipos de religiosidade. O primeiro deles, a religião do homem, corresponde ao contato direto do indivíduo com seu deus, num foro íntimo. O segundo, a religião do cidadão, é o conjunto de crenças e ritos que serve como fator de coesão social e identificação mútua entre indivíduos de um mesmo grupo. E o terceiro, o único maléfico dentre os três, é a religião dogmática, que apresenta um conjunto de regras a serem seguidas pelo indivíduo, regras estas que podem conflitar, e geralmente conflitam, com as outras regras sociais, as de ordem política estabelecidas no contrato social. Esta terceira forma é maléfica por “submeter o homem a dois senhores”, funcionando como fator de enfraquecimento do poder e da unidade políticos.
No entanto, mesmo entre as duas formas benéficas de religiosidade – benéficas por promoverem o bem-estar do homem consigo mesmo e com o mundo a seu redor –, Rousseau professa preferência por uma delas, qual seja, a religião do cidadão. Para o filósofo, a religião é importante, fora de seu âmbito específico, para promover ou aperfeiçoar a coesão social e política de um povo. E aqui encontramos a implicação extrema do argumento, que Rousseau expõe sem nunca tentar encobrir determinados aspectos ou mesmo maquiar a conclusão como um todo: a religião mais perfeita, do ponto de vista político, é a própria teocracia, onde as figuras dos soberanos político e espiritual estão reunidas numa mesma. É claro que Rousseau, em pleno século das razões e das luzes, não é um adepto da teocracia. Repugna-a, pois a mesma tolhe a liberdade e a tolerância religiosas que, para ele, são fundamentais. Mas leva sua teoria política até às últimas implicações e reconhece-a como ideal de coesão social.
Com vistas ao paralelo que intento traçar neste texto, o ponto mais importante a ser considerado relativamente ao Contrato Social e à vontade geral rousseaunianos é o seguinte: em termos gerais, uma das crenças professadas por Rousseau, mesmo que implicitamente, neste trabalho é que não existe uma regra absoluta de conduta política a ser seguida, e nem mesmo regras que podem ser aplicadas a determinadas situações específicas. A boa solução é a solução que agrada aos interessados. Consequências boas ou ruins, isto não importa, até porque não existem parâmetros concretos para este tipo de avaliação. Uma alternativa consensual, que agrade à comunidade, é sempre a melhor alternativa. E nenhuma outra deve lhe tomar o lugar.
Face à (mais do que tardia) falência dos modelos científicos positivistas das últimas correntes popperianas ocorrida nas últimas décadas, cresceu bastante em vulto e importância o que se convencionou chamar “moderna proposta retórica”. Os teóricos desta corrente propõe-se a resgatar a retórica, como formulada pelos filósofos da Antigüidade Clássica, destituí-la da conotação negativa que acumulou ao longo dos séculos (a retórica como artifício persuasivo voltado para fins escusos), e atribuir-lhe um papel primordial em todos as formas de discurso e comunicação em geral, principalmente no meio científico. A proposta, como pode-se facilmente entrever, gerou e vem gerando grandes celeumas e controvérsias. Seu conteúdo, no entanto, não é tão anárquico quanto poderia parecer à primeira vista, sendo, por outro lado, extremamente instigante e renovador.
A retórica moderna, em ciência, propõe que a evolução e a resolução de controvérsias dá-se não através de métodos falseacionista ou qualquer outro artifício teórico positivista, e sim através de discurso argumentativo, persuasivo e da utilização de recursos retóricos, como os conhecemos. Não convém para os propósitos deste texto uma descrição pormenorizada das críticas e questões levantadas por esta corrente epistemológica, bem como dos argumentos contrários a ela. De forma geral, sob um ponto de vista retórico, uma boa teoria é uma teoria capaz de gerar consenso em torno de si. Os métodos científicos para tanto utilizados são de pouca ou nenhuma relevância.
Há que se prestar atenção, no entanto, para o que está por trás desta definição. O que é, afinal, necessário para que uma teoria forme consenso em torno de si? É claro que belas palavras não formam consenso por si mesmas, ao menos não em todos os casos, e principalmente no meio científico, onde pode-se verificar uma predisposição à não aceitação de argumentos e, consequentemente, à não formação de consenso. Enfim, para formar consenso, a teoria precisará mostrar-se convincente de acordo com seja qual for o parâmetro adotado pela comunidade científica em questão. Formar consenso significa convencer e agradar os envolvidos na discussão.
Ora, o que se pode entrever nisso é, justamente, uma negação de verdades universais e absolutas, da Verdade, professada abertamente pelos teóricos da moderna retórica. O que eu entrevejo nisso é uma sintonia, talvez mesmo involuntária, com o bom e velho Rousseau. A teoria que forma consenso em torno de si, convencendo aos envolvidos na discussão, não é de forma alguma uma Verdade, absoluta, universal e atemporal, mas antes uma verdade conjuntural, contingente, adequada à situação em questão. E esta verdade conjuntural, que aqui forma consenso em torno de si, nada mais é do que a alternativa que lá no Contrato Social era a melhor pois agradava à maior parte da comunidade.
De formas diferentes, sob ângulos diferentes e em épocas diferentes, estas duas manifestações teóricas levantaram uma mesma questão. É necessário preocupar-se com as verdades absolutas, despender nossos esforços intelectuais tentando encontrá-las, ou fazemos melhor atendo-nos aos problemas que se apresentam à nossa frente e que demandam uma solução? A segunda proposta, essencialmente pragmática, torna-se cada vez mais plausível à medida que crescem, dia após dia, os excessos provocados pelo “chauvinismo científico”, como descrito por Feyerabend. O problema, partindo do âmbito científico, pode ser facilmente estendido às mais diversas áreas da vida social, e por isto mesmo a idéia deste texto é estimular uma pequena reflexão acerca do tema. De minha parte, fico com Rousseau e os retóricos.
Na minha opinião - não científica - não existe nada absoluto neste universo, tudo á relativo. Verdade idem. Cada um tem a que melhor lhe veste as necessidades, com ou sem Rousseau. Gostei do texto, um bom exercício de racicínio para quem, como eu, não é do ramo. Sonia Pereira.