Uma das cenas mais importantes e intrigantes de Tropa de Elite 2 é quando o Capitão Nascimento inicia uma luta de judô com seu filho adolescente dentro do BOPE. Ali estão intricados todos os elementos que compõem a personalidade do policial e sua relação com o mundo. Um sujeito guiado pela paixão, tendo que enfrentar os dissabores que esta paixão traz (afetiva e profissionalmente) e resolver a complexidade disso tudo no território de um tatame, que simboliza o espaço das emoções conflitantes e do corpo colocando em estado de guerra.
É dentro dessa tensão que o filme, dirigido por José Padilha,também se resolve de forma grandiosa. Somos jogados dentro de um furacão, uma espécie de campo de batalha, onde parar para respirar, nem que seja por um segundo, pode significar a morte. E todo o filme se pauta nessa respiração contida, como a dos atiradores por trás de metralhadoras prontas para serem disparadas, e das emoções de Capitão Nascimento, pronto para explodir como uma granada que detona tudo à sua volta.
O campo visual da tela nos coloca em total estado de apreensão e somos lançados dentro da realidade representada como se ali estivéssemos. Não há como fugir dessa sensação de vertigem quase barroca, de pertencer aos fatos que se mostram, dada a proximidade que temos com os personagens. Há cenas de disparos de metralhadoras, por exemplo, que colocam o espectador como se estivesse na situação do atirador, pois a câmera se coloca ao lado da arma que dispara histericamente, fazendo vibrar a sala do cinema e nos dando a possibilidade não só de assistir, mas de nos sentirmos responsáveis inconscientes pela tragédia desumana que presenciamos com os olhos arregalados e com uma constante falta de ar.
Este não é um filme de ação calculado, previsível, dogmático, como o cinema americano tem feito várias vezes. Se o filme se desenrola na velocidade das rajadas de bala e das ações policiais e, ainda, da turbulência fria e assassina de seus personagens, é porque sua forma necessita dessa respiração tensa, em suspensão, para nos colocar dentro do drama que assistimos. Nesse sentido, forma é conteúdo. Não há possibilidade de distanciamento intelectual num filme desse tipo. Nós saímos do cinema como se tivéssemos atravessado a zona de guerra em que se transformaram algumas regiões periféricas das grandes cidades dominadas por "milícias" (que o filme explica as razões).
A grande atuação dos atores, todos extremamente convincentes, a movimentação ativa da câmera e os cortes perfeitos tornam Tropa de Elite 2 uma obra-prima do cinema contemporâneo. Sua tensão não é apelativa, sua violência não é fetichista (por exemplo, o estupro da jornalista não é mostrado, apenas insinuado). O ator Wagner Moura desaparece na figura do Capitão Nascimento, nos presenteando com uma das mais competentes interpretações não só do cinema brasileiro, mas da cena mundial. Quanto a Seu Jorge, sem comentários, pois, como no caso de Elba Ramalho, a música (com justiça) nos rouba um maravilhoso ator.
A grosseria da realidade, a frieza dos assassinatos, a desumanização das relações sociais e as práticas políticas para lá de fascistóides, que sustentam este mundo, são tratadas esteticamente com a mesma matéria da violência com que se fabrica a realidade. Sem o impacto sonoro e visual turbulento, seja das armas pesadas, dos assassinatos frios e mecânicos, dos estupros desumanos, das jogatinas políticas cínicas e imorais, das relações pessoais à beira da destruição, não teríamos condições nem de raspar de perto nessa realidade.
Tropa de Elite 2 nos joga propositalmente dentro dessa realidade. Quase chegamos a sentir o cheiro do bafo podre dos policiais violentos e inescrupulosos, quase sentimos o cheiro da pólvora das armas se misturando ao cheiro da carne queimada dos repórteres investigativos assassinados friamente pelos policiais. E a náusea que sentimos durante e após o filme revela o quão próximos estivemos disso tudo.
Este é um filme de denúncia radical, que exibe o cheiro podre das relações entre política, polícia e miséria social no Brasil. Todos são acusados, do Governador do Estado ao funcionário público da polícia (sejam delegados, aumentando sua renda com práticas desumanas de exploração e morte, seja um simples policial pronto a cumprir ordens de matar também por alguns trocados ou submissão aos superiores).
A trama do filme trata da passagem do Capitão Nascimento de líder do BOPE à secretário da justiça, onde pensa poder mudar o "sistema" por dentro. As barreiras que encontra são as dos interesses políticos que passam por cima de qualquer ética, moral ou possibilidade de humanismo.
No território imundo da política e de seus escusos interesses que gerenciam os abusos de poder e as desgraças sociais apresentadas pelo filme, Capitão Nascimento sonha ingenuamente em transformar a sociedade num lugar justo, menos corruptível. Esse sonhador vê sua vida pessoal (casamento e filho) e social (líder do BOPE e Secretário de Justiça) serem destruídas por sua paixão pelo trabalho de reformador responsável da sociedade.
Nascimento descobre-se, de repente, como apenas uma entre outras peças de uma máquina de guerra sem controle e perde, por isso, sua ilusão de agente criador da sociedade. Seu trabalho, que o dignificava como peça importante da sociedade e como indivíduo, se revela o contrário: ele é apenas um agente preparado para defender uma estrutura de poder corrupta e sangrenta.
Depois dessa descoberta, passa a agir com mais sapiência e dúvida em relação à própria estrutura que defendia, abrindo os olhos para o complicador maior que é o próprio Estado (que se revela, no filme, o grande criminoso da história).
O filme tem um final quase redentor, quando uma ação judicial, implementada por Nascimento e pelo deputado ligado aos Direitos Humanos, coloca na cadeia parte dos policiais assassinos e dos políticos corruptos. Eu disse quase, pois não se pode sobreviver em estado de redenção com tantos farrapos presos à história de nossos corpos e mentes: as chagas de nossa história são quase incuráveis, pode-se dizer.
Nesse momento, o filme mostra novamente como paixões pessoais e sociais se interpenetram, pois é quando Capitão Nascimento vê sua família ameaçada que ele se move contra o corrupto "estado de coisas" de forma radical, usando as próprias armas do Estado de Direito para punir o Estado. Daí ele supera o ódio pessoal (inclusive, aliando-se ao Deputado que inicialmente era seu opositor na esfera sentimental, casando-se com sua ex-mulher, e social, por defender os direitos humanos de "bandidos") e, racionalmente, empreende uma vingança que mesmo que tenha um fundo pessoal, se alicerça em garantias ainda vigentes numa República com garantias Constitucionais.
Capitão Nascimento simboliza, talvez, o espírito e o desejo de justiça incrustado em cada brasileiro que sonha uma sociedade mais decente, livre dessa canalha política que nos governa e gera, por tabela, os monstros que Tropa de Elite 1 e 2 exibiram de forma crua e sombria.
Durma-se com essa, e bom pesadelo a todos, pois esse osso é duro de roer.
O filme inicialmente já demonstra seu caráter documental, abordando, no ligeiro esclarecimento do representante dos Direitos Humanos, a dura realidade brasileira em face às condições do seu sistema prisional. Porém o filme revela em seu desenrolar uma outra ótica acerca da situação lamentável encontrada no Brasil nos dias atuais, obviamente usando para tal a Cidade Maravilhosa, remetendo o problema ao grande sistema que marginaliza o indivíduo, colocando-o na condição de "enfeite" da bela paisagem carioca (será o morro?). Para, assim, um grupo de elite da polícia invadir e, temporariamente, deixar tudo em ordem, com muitos vagabundos estendidos em meio ao sangue derramado. A história evidencia, através do caos da favela e da "vontade" do Estado agir, o resultado puramente vantajoso que é manter a situação como se encontra, para maior benefício da elite.
Realmente, um belo exemplar do cinema nacional. Não é à toa que vai atingir dez milhões de espectadores. Entretanto, saí triste do cinema. Apesar de toda a denúncia estampada no filme, não houve nenhum impacto na vida real. O governador foi reeleito, os deputados suspeitos também, não se viu nenhum expurgo de policiais corruptos, os celulares e as armas continuam entrando nos presídios (agora mesmo, o tal de Marcinho VP comandou os ataques no Rio de dentro de presídio de segurança máxima), o pessoal continua cheirando cocaína por toda cidade. Há muitos interesses em jogo para poder-se mudar alguma coisa.