Eu não o vi nascer, não vi seus primeiros passos, seu primeiro aniversário, os primeiros dentes, as primeiras gracinhas. Mas tenho orgulho de dizer que estive com esse piá em metade de sua trajetória. Falo do Digestivo Cultural, uma das mais interessantes, independentes e diversificadas revistas culturais da Web, tocada pelo competente Julio Daio Borges há impressionantes dez anos. Dez anos. É tempo pra caramba, especialmente se pensarmos que no começo seus leitores davam os primeiros passos na internet.
Conheci o site por um motivo curioso: havia sido lançado um livro de contos em que eu participava, Fatais, da Casa Verde, e tivemos uma resenha média publicada no Digestivo. Não elogiosa, mas respeitosa. Eu recém havia ingressado no Mestrado em Letras e queria muito escrever para o jornal Rascunho, como meu amigo Luiz Paulo Faccioli, ou para a revista Aplauso, como um outro amigo, Flávio Ilha, pois via na resenha uma forma de dialogar com o universo literário. Mas as portas não pareciam estar abertas para iniciantes. E eis que conheço o Digestivo, entro em contato com o Julio e pergunto se posso enviar uma resenha. Ele topa, compro Um amor anarquista, do Miguel Sanches Neto, e depois de alguns elogios do "chefe" sou convidado a entrar no seleto time de colunistas.
Da primeira resenha, em setembro de 2005, até hoje foram 107 textos e um total de 367.085 acessos, média de 3.430 acessos por texto (algo me diz que é muito mais do que se a Rascunho ou a Aplauso me tivessem aceito na época). A obrigação de manter uma regularidade, primeiro quinzenal, depois mensal, me obrigou a ler muito mais do que o faria não fosse o site, pensar muito mais para escrever os textos e com certeza isso foi fundamental para minha carreira acadêmica (hoje já estou no Doutorado), além de ampliar muito meu conhecimento e gosto pela literatura contemporânea.
Logo percebi o alcance do site. Não bastassem os e-mails e comentários das mais diversas partes do Brasil, uma vez fui dar uma palestra no Salão do Livro de Tocantins e qual não foi minha surpresa quando encontro uma menina esperando para me conhecer pessoalmente, pois era minha leitora no Digestivo. Em Palmas, Tocantins!
Mais lento é o aprendizado dos macetes de um resenhista e também de um colunista de internet, onde o texto fica publicado para sempre, e não apenas durante o mês que circula o jornal ou a revista. Aprendi a importância de dosar bem as palavras no elogio ou na crítica, a fazer bons títulos para fisgar mais leitores, a valorizar os comentários, a escolher com cuidado os temas e os livros. Passei a me aventurar em outras áreas, escrevi sobre cinema, música, quadrinhos, telenovela. Resenhei Nobéis e plebeus.
Que os leitores perdoem a pessoalidade do texto, mas não tem como não se emocionar lembrando de tudo o que aconteceu em cinco anos, cinco anos publicando textos mensalmente, recebendo recados e comentários quase diários. Devo confessar, aliás, que o Digestivo Cultural foi a grande inspiração para eu criar, aqui no RS, o portal Artistas Gaúchos, que hoje tornou-se o carro-chefe do meu trabalho. Não caí na tentação boba de criar um novo Digestivo, pois só o Digestivo pode ser o Digestivo, então fiz um Digestivo do Rio Grande do Sul, bairrista como só nós podemos ser.
A seguir, como forma de deixar registrada essa trajetória, faço uma lista das 10 colunas que mais me marcaram, minhas 10 melhores digestões para celebrar os 10 anos do Digestivo.
Um Amor Anarquista A primeira vez a gente nunca esquece. Era a primeira resenha, comprei o livro e li com um cuidado e uma atenção que talvez jamais tenha em nenhuma outra leitura. Avançava as páginas fascinado com a história e preocupado com o que dizer, quais trechos abordar, como ser fiel ao livro sem contar a história. Relendo hoje percebo a insegurança de um iniciante, citando referências eruditas já no começo para mostrar conhecimento, e a construção tradicional, priorizando o enredo e econimizando nas impressões mais subjetivas.
Com a palavra, as gordas, feias e mal amadas Depois da mais antiga, a coluna mais acessada. Havia acabado de ler Por que sou gorda, mamãe?, da minha amiga Cintia Moscovich, um livro que até hoje tenho a sensação de não ter compreendido plenamente, e fiz uma resenha que por um motivo muito simples tornou-se a mais acessada: o título. E eis que descobri o poder de um título. Não pode ser fraudulento, é fundamental que ele tenha relação com o texto, mas títulos como esse atraem e, mais do que isso, na Era do Google é fundamental colocar no título palavras-chave. Não por acaso a segunda mais acessada é "Sexo, drogas e rock'n'roll", resenha sobre o livro Tempos heróicos, do Jakzam Kaiser.
Um defeito de cor, um acerto de contas Mil páginas. Na caixa de livros que o Digestivo me enviou como sugestão de pauta no segundo semestre de 2006, veio um de MIL páginas publicado pela Record, que com certeza não gastaria com a impressão de uma única página de autor desconhecido não tivesse o texto muita qualidade. Resolvi ler pelo menos as 100 primeiras páginas para tentar fazer uma resenha, não precisar devolver o livro ao site e lê-lo com calma no verão. Que nada, foi arrebatador, comecei a ler e quando vi estava na 400, na 500, e assim fui até o fim e fiz uma das resenhas mais entusiasmadas sobre Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves. Este livro, aliás, depois me inspiraria a escrever a novela A Cor do Outro, sobre a questão do preconceito.
A caixa de confeitos da literatura contemporânea Um crítico literário que se preze tem que criticar também, não pode ficar só elogiando e jogando confete, certo? Bem, eu acreditava nisso, e a oportunidade surgiu quando li A caixa de confeitos e contos sortidos, livro de estreia de Leonardo de Moraes. Fui duro na crítica, hoje diria que duro demais, o autor chegou a me escrever pedindo para editar uma parte em que se sentiu pessoalmente desrespeitado. Revelei-me um crítico fraco, mas acredito que uma pessoa razoável, pois fiz a edição (excluindo o trecho, não mudando de opinião, claro), e me dei conta da bobagem dessa afirmação de que um crítico tem que criticar. Nada disso, até porque o pior pesadelo para um livro e um autor é o silêncio, nada pior do que o silêncio em se tratando de literatura. E nada pior do que a pretensão para alguém que está ali para dar uma opinião. E nada mais que isso, UMA opinião, ainda que abalizada por trajetória ou "títulos" acadêmicos.
Confissões de um crítico em tempos de internet Hoje, relendo minhas crônicas mais antigas, percebo que já havia feito uma auto-retrospectiva, muito melhor do que essa, aliás, quando completei um ano de Digestivo Cultural. Lá não apenas contei com mais detalhes minha chegada ao site como tive a pretensão de dar uma dica aos aspirantes à resenhista: "o escritor deve fazer como o músico, ser crooner. Mas ao invés dos bares da vida, o espaço do crooner literário são os sites, e hoje sei que o Digestivo foi um ótimo espaço para eu exercitar esse texto que não pode abrir mão da qualidade mas também precisa ter apelo de público, precisa da consistência acadêmica mas não pode abrir mão da factualidade jornalística. Um texto ao feitio das músicas do crooner".
Nem memórias nem autobiografia, mas Saramago Nunca esqueci de um e-mail enviado a mim pelo Julio, o editor, depois de eu publicar essa resenha. Ele dizia, em resumo, que eu era um dos melhores resenhistas do site de todos os tempos. Confesso que esse afago no ego me fez persistir e continuar escrevendo e publicando no Digestivo mesmo nos momentos mais difíceis, ainda que eu mesmo considerasse um exagero do amigo.
Estrangeirismos, empréstimos ou neocolonialismo? Com o fim do Mestrado eu inventei de voltar para à graduação e fazer Letras, pois havia me graduado em Jornalismo e para dar aula de literatura na universidade eu precisaria do curso de Letras (que acabarei no final deste ano!). Foi um dos momentos mais difíceis, pois além do meu trabalho e das minhas palestras, havia as aulas e a infinidade de tarefas e leituras, sobrando pouquíssimo tempo para escrever. Então surgiu uma ideia: por que não escrever sobre os temas discutidos em aula? E assim fiz uma das colunas mais acessadas e que mais geram contatos comigo, sobre estrangeirismos. A todo momento estudantes me pedem para ajudar com trabalhos, me pedem bibliografia, querem me entrevistar sobre o tema, e sempre respondo que não sou especialista, apenas escrevi uma coluna onde escrevi tudo o que tinha a dizer.
O hiperconto e a literatura digital Bem diferente é o caso das colunas em que abordo os temas do meu Mestrado, minicontos, ou Doutorado, literatura digital. Aqui escrevo apenas sobre partes de um trabalho imenso, de um emaranhado de leituras, e aproveito para exercitar a desacademização do meu texto, tornando-o acessível ao público ("Micronarrativa e pornografia" foi o caso mais extremo, aliás). Certa ocasião, falava com minha orientadora sobre o tema de minha Tese e disse que iria criar um novo gênero e batizá-lo de hiperconto. Pretensão à parte, precisava deixar esse nome registrado e associado ao meu de alguma forma, e qual foi a solução? Publicar uma resenha no Digestivo, abusando de sua credibilidade. Assim nasceu o texto "O hiperconto e a literatura digital". Não foi o único sobre o tema e muitos ainda virão, até porque está na ordem do dia.
Geração Coca Zero O que fazer numa danceteria cheia de mulheres e bebida com a namorada ao lado e um showzinho de rock no palco? Pensar num excelente tema para uma coluna no Digestivo, claro. Brincadeiras à parte, foi assim que nasceu a ideia para o texto "Geração Coca Zero", que depois me inspirou para escrever o "Burguesinha, burguesinha, burguesinha". Acho muito saudável esses textos sobre produtos culturais do nosso cotidiano, pois eles aproximam o olhar crítico do dia a dia das pessoas. Talvez seja isso o que os norte-americanos chamam de cultural studies, e não por acaso hoje alterno resenhas sobre livros com comentários sobre telenovelas, filmes ou fatos relevantes para a cultura e a educação.
Quanto custa rechear seu Currículo Lattes Este é o meu preferido, tinha que terminar com ele. E também o mais polêmico. Comecei a escrever porque estava com muita raiva da orientadora de minha esposa, como conto no texto, mas pensei três vezes antes de publicá-lo porque tenho certeza de que isso ainda pode prejudicar minha carreira acadêmica ou profissional. Mas eu tinha que publicar, e não por acaso este é o texto com mais comentários, sem contar os inúmeros e-mails que recebo com depoimentos de pessoas que preferem não se expor em comentários públicos, elogiando minha coragem. Há poucos dias, aliás, alguém fez uma chamada ao texto no Twitter, mais de um ano depois de sua publicação, e ao que tudo indica essa problemática tende apenas a aumentar, o que deve tornar o texto mais e mais lido.
Os textos inteligentes de Marcelo Spalding são sempre uma referência, principalmente a respeito de micronarrativas, sobre as quais é especialista. Sou grato a ele pela gentileza com que sempre atendeu às minhas mensagens. Parabéns, Marcelo, Julio e os que fazem deste Digestivo um ponto de encontro de amigos! Um abraço, José Marins (Curitiba).