Eu já me declarei, aqui mesmo, no Digestivo, um bibliófilo com preferência pelos sebos. E, cada vez mais, tenho motivos para reafirmar minha preferência. Acabei de ler, há poucos dias, A sociedade literária e a torta de casca de batata (Rocco, 2009, 304 págs. ― no original, The Guernsey Literary and Potato Peel Pie Society) da bibliotecária e livreira Mary Ann Shaffer com a colaboração de sua sobrinha Annie Barrows. Foi uma indicação do editor-assistente do Digestivo, Rafael Rodrigues, e este livro ratificou minha preferência. Para resumi-lo em uma só frase: é uma história de livros que aproximam pessoas. Exatamente o que eu penso deles.
Infelizmente, desta vez meu exemplar de sebo não veio com nenhuma marcação de seu dono anterior. Aliás, uma reflexão que me veio quando cheguei em uma parte em que Julliet Ashton, a escritora que é a personagem principal da história, pergunta ao seu editor Sidney Stark se, de fato, 30% dos livros são comprados para serem dados de presente: comprei o meu num sebo (como não poderia deixar de ser), e ele estava quase novo. Na verdade, velho: um pouco sujo nas bordas, um pouco mal-tratado. Mas não parecia que havia sido lido antes. E, assim, me deu a impressão de que foi um presente dispensado por alguém.
Esta reflexão me fez agir como a própria Julliet Ashton: ao olhar para as janelas das casas enquanto viaja de trem, ela capta detalhes e, a partir deles, imagina a vida das pessoas. Dá dinâmica e vivacidade àquela imagem. Eu faço isso pelos livros, como com este. Agora, retomando-o para escrever este texto, notei que a folha de rosto foi arrancada. Uma folha com dedicatória, talvez? Um presente de alguém não mais querido, cujas lembranças não devem mais ser guardadas? A imaginação vai mesmo longe com os livros de sebo.
Mas vamos ao conteúdo: trata-se de uma história inteiramente contada e registrada através das cartas trocadas entre os personagens. O contexto é o pós-Segunda Guerra Mundial, especificamente o ano de 1946, ainda com todos os traumas, as histórias e as dificuldades oriundas do conflito. Começa com o primeiro livro que aproxima pessoas: uma coletânea de textos escritos pela protagonista Julliet Ashton, moradora de Londres. A autora sai em turnê para divulgar o livro (coisa em falta no Brasil. Ela, então, vai se correspondendo com seu editor e alguns outros personagens do seu círculo de amizades, inclusive relatando as interações com seus leitores.
Aí entra um segundo livro que contribui nas aproximações humanas e, neste caso, vale citar uma frase da personagem principal: "Talvez haja algum instinto secreto nos livros que os leve a seus leitores perfeitos. Se isso fosse verdade, seria encantador". Ocorre que um dos livros vendidos por Julliet Ashton para abrir espaço em sua estante foi parar nas mãos de Dawsey Adams, um morador de Guernsey, uma ilha do Canal da Mancha que foi ocupada pelos alemães durante a guerra. Julliet havia colocado seu nome e endereço na folha de rosto (talvez, como o ex-dono do meu livro), o que permitiu que Dawsey escrevesse para ela, comentando notas marginais feitas por ela e pedindo informações para obter novos livros do autor.
Os dois passam, então, a se corresponder, e Julliet conhece a história da sociedade literária que dá o curioso título ao livro: A sociedade literária e a torta de casca de batata. Trata-se de uma espécie de grupo de leituras criado no total improviso. Uma noite, alguns moradores de Guernsey, entre eles o próprio Dawsey Adams, burlando o toque de recolher instituído pelos alemães durante a ocupação da ilha, foram à casa de uma vizinha comer um porco assado ― um delito grave na época, posto que os alimentos eram controlados pelos alemães. Na volta, foram abordados por bravos soldados e, questionados sobre o motivo de não estarem em suas respectivas casas, ficaram atônitos. Só uma das integrantes do grupo, Elizabeth McKenna, não se submeteu e reagiu de forma surpreendente: afirmou que eles estavam vindo do encontro da Sociedade Literária de Guernsey e que o debate do livro Elizabeth e seu jardim alemão havia sido tão interessante que eles perderam a noção do tempo. Assim apareceu, na história, mais um livro atuante nas relações humanas. Embora fictício, tal como a sociedade literária da fala de Elizabeth até então, contribuiu para que o grupo escapasse da situação. Desta forma surgiu a Sociedade: a necessidade do álibi deu o pontapé inicial e, para não confessar a mentira, foi necessário estruturar, de fato, um grupo de leituras.
Para a Sociedade entraram pessoas que nem sequer tinham o hábito da leitura, entre eles Will Thisbee, o responsável pela inserção de Torta de Casca de Batata no nome do grupo. Ele não ia a nenhuma reunião se não houvesse o que comer. Preocupava-se com isso. Como a situação durante a guerra era precária, ele montou a iguaria: purê de batatas como recheio, beterrabas coadas para adoçar e cascas de batata para cobrir.
A partir do momento em que Julliet Ashton tomou conhecimento destas histórias, ficou tão interessada que passou também a se corresponder com os demais membros da Sociedade. Neste caminho, a história vai apresentando os personagens, suas histórias, sua relação com as leituras e a Sociedade Literária, suas lembranças e traumas do período da Guerra etc. Os livros, pedras-angulares da Sociedade, vão entrando ao longo da história, estabelecendo as relações dos personagens.
Por fim, Julliet Ashton, que estava em busca de um novo tema para sua próxima empreitada como escritora, decide escrever sobre Elizabeth McKenna e sobre a Sociedade Literária e a Torta de Casca de Batata de Guernsey. E este último livro da história, responsável pela mudança de Julliet para a ilha, aprofunda os laços de amizade entre os personagens membros da sociedade e ela, bem como promove seu casamento com Dawsey.
A história em si é branda, mas o testemunho do potencial da leitura e dos livros é grandioso. Começando e terminando com a atuação magistral dos livros na vivificação das relações humanas, A sociedade literária e torta de casca de batata é, sem dúvida, uma leitura encantadora. Aí se encontra um forte argumento contrário à ideia da extinção dos livros: responsáveis por aproximações entre pessoas, eles são elementos importantíssimos para gozar a vida.
Por fim, reproduzo as palavras da protagonista para acrescentar uma ideia: "É isto que amo na leitura: uma pequena coisa o interessa num livro, e essa pequena coisa o leva a outro livro, e um pedacinho que você lê nele o leva a um terceiro. Isso vai em progressão geométrica ― sem nenhuma finalidade em vista, e unicamente por prazer". E quando, então, os livros nos levam a novos livros e também às pessoas? Que potencial, hein?!
Há livros que trazem o prazer da leitura e de um aprendizado. Já um trabalho literário que envolva alimentação traz a experiência do sabor e o prazer de cozer, comer e ler ao mesmo tempo.