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Terça-feira, 7/12/2010
Ferreira Gullar ou João Goulart?
Wellington Machado
+ de 4900 Acessos
+ 1 Comentário(s)

Em recente crônica na Folha de São Paulo [conteúdo restrito para assinantes], o poeta Ferreira Gullar faz um interessante relato de um passeio dominical que fez pelo calçadão de Copacabana. Enquanto andava, o poeta foi vítima do acaso, quando foi abordado por uma turma de jovens (ele não cita a idade deles). O cerne do artigo é a importância do acaso em nossas vidas. Tivesse ele se atrasado por algum motivo mínimo, como voltar para apanhar um guarda-chuva, pegar uns trocados ou conferir o gás, certamente teria se encontrado com pessoas bem diferentes das que encontrou. Mas, ao se deparar com os jovens, Ferreira Gullar vivenciou uma inusitada e hilária confusão com o seu nome. O primeiro deles confundiu-o com ator Paulo Goulart. Persistindo a dúvida, os outros passaram a fazer suas tentativas: um deles confundiu o poeta com o João Goulart; um outro chamou-o de Goulart de Andrade.

O episódio um tanto engraçado nos leva a refletir acerca de algumas questões. A confusão nos faz pensar sobre as transformações contemporâneas. E abordar o nosso tempo é inevitavelmente pensar sobre o vertiginoso avanço tecnológico, a nossa própria velocidade (computador, internet, comunicação instantânea, globalização etc.). Tais avanços provocaram (e continuarão provocando) uma radical transformação cultural e modificaram nossa maneira de lidar com a história, com os movimentos culturais, as correntes de pensamento e, mais precisamente aqui, no caso do Ferreira Gullar, o fenômeno da idolatria.

Vamos nos ater à cultura. Como em toda mudança, há perdas e ganhos. O que constatamos hoje? Múltiplas oportunidades para os novos artistas (cujo espaço para a divulgação de seus trabalhos era exíguo há alguns anos), e o consequente aumento da concorrência para os artistas, digamos, "estabelecidos", pré-internet. Grandes ídolos consagrados disputam hoje espaço com uma infinidade de pequenos candidatos ao reconhecimento ― muitos destes são voláteis. A "pulverização cultural" substituiu a "canalização cultural". Explico.

O lado positivo desse avanço tecnológico é que, principalmente em cultura, passamos a ter (ou conhecer) centenas, milhares de músicos, escritores, artistas plásticos etc., aos quais antes não tínhamos acesso. O que temos agora? Milhões de possibilidades! Pessoas que antes da internet não tinham espaço de divulgação, agora têm infinitos caminhos para se promoverem (YouTube, Facebook, Orkut, blogs, sites etc.). Com esse arsenal, a sociedade internauta criou pequenos grupos organizados por afinidades.

Não é novidade para ninguém que aumentamos substancialmente nossa diversidade cultural e, repito, isso é ótimo! Nossos ídolos (artistas, não aquela idolatria histérica) são menores, no entanto, são mais acessíveis. Meses atrás, um grupo de amigos do Rio de Janeiro se organizou, abriu uma lista na internet para levantar o cachê e contratar o grupo Belle & Sebastian para um show na cidade ― a banda passaria somente por São Paulo, Belo Horizonte e Porto Alegre. Fosse o Paul McCartney, um dos últimos "megaídolos" remanescentes, a empreitada não teria o mesmo sucesso. Há muito mais artistas exibindo seus trabalhos para grupos bem mais restritos de admiradores: é o que eu denomino aqui "pulverização cultural". E essa tendência em formar grupos por afinidades se faz em outras áreas. Ocorre até em nossas estruturas físicas: as nossas salas de cinema estão cada vez menores, mas são milhares delas, setorizadas. Vivemos o melhor momento em se tratando de disseminação cultural.

O lado negativo é que podemos estar perdendo um importante "lastro histórico-cultural" com consequências danosas ― principalmente no que tange à preservação da memória e do diálogo cultural entre correntes e movimentos. Os componentes desses pequenos grupos dialogam entre si e com seus "microídolos", mas pouco conversam com os outros grupos. Como era antes e o que mudou? Tínhamos antes uma certa "canalização cultural", qual seja, a que produzia grandes artistas, já que nossas fontes midiáticas eram bem reduzidas. Os poucos canais de que dispúnhamos eram a TV, o rádio, os jornais e as revistas. As grandes massas bebiam somente nessas fontes, nivelando igualitariamente os gostos e preferências. Vai daí, por exemplo, o boom de idolatria na música nos anos 60 e 70, insuflado pelos meios de divulgação "canalizados" principalmente na TV e no rádio. Os ícones surgiram nessa época: Beatles, Pink Floyd, Bob Dylan, Rolling Stones, até chegarmos aos mais recentes, Michael Jackson e Madonna. A fonte de "megaídolos" seca a cada dia.

Essa "canalização cultural" teve uma função importante: acabou propiciando uma aglomeração de pares por afinidade, o surgimento de correntes de pensamento e movimentos culturais, respeitando uma certa linha histórica. Essas correntes dialogavam com a tradição, contrariando-a ou modificando-a (até bem antes da TV). Na pintura, por exemplo, o academicismo foi questionado pelo impressionismo, que influenciou o cubismo; vieram depois o expressionismo, futurismo, dadaísmo, pop art etc. Na literatura, sucederam-se as epopeias, romances de cavalaria da Idade Média, renascimento, romantismo, realismo, os beatniks, realismo fantástico. No cinema, o impressionismo alemão, o realismo, o neorrealismo, a Nouvelle Vague, Dogma 95.

Havia nas artes, portanto, ou uma ruptura ou uma evolução provocada pelo constante diálogo entre as correntes ou movimentos ("canalizados", já que eram poucos) que se comunicavam, criando uma linha evolutiva um tanto coerente. Tínhamos um "lastro histórico-cultural" com quem dialogar. Essa tradição é mais presente na Europa e um pouco nos Estados Unidos, apesar de ambos estarem sofrendo hoje também os efeitos globalizantes da "pulverização cultural". No Velho Mundo, óbvio, o "lastro histórico" vem desde a tradição greco-romana. Os Estados Unidos ainda conseguiram aglutinar algumas correntes e alinhavar uma tradição, ainda que pequena e tardia, com a fuga dos artistas europeus ante a iminência da Segunda Guerra.

O certo é que a era dos grandes movimentos culturais já se foi. A última corrente forte e coesa no cinema foi o Dogma 95. Nas artes plásticas não houve mais um movimento com a força e a influência da pop art, lá nos anos 70 ― o que tivemos depois foi a "pulverização": arte conceitual, performances, instalações, videoarte e tubarões embalsamados. Provavelmente teremos bem menos álbuns de música, clássicos como um Sgt. Peppers (Beatles), unificados por uma história ou fruto de uma experiência do compositor. As músicas estão cada vez mais espalhadas pela internet para serem baixadas isoladamente em pequenos aparelhos, sem nenhuma relação "física" que as una. De novo, tudo está menor e em grande quantidade.

Mais especificamente no Brasil, o avanço tecnológico e a "pulverização" aconteceram em momento enviesado. O país foi pego no contrapé da sua formação histórico-cultural devido à sua pouca idade. Como temos pouco mais de 500 anos, o nosso "lastro cultural" é muito mais curto. Qual é a idade da nossa de vida cultural "autônoma"? Pouco mais de 150 anos! Em literatura podemos considerar, grosso modo, Machado de Assis, o modernismo, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Drummond, o concretismo. Em cinema, nosso único grande movimento foi o Cinema Novo. Nossos últimos ídolos "de massa" foram os impulsionados pela TV: Chico Buarque, Caetano Veloso, Milton, Gilberto Gil etc.

A "pulverização cultural", apesar de abrir milhares de possibilidades de acesso à cultura, paradoxalmente ofusca a nossa memória cultural: para a nova geração parece que o mundo acontece do agora pra diante. Ferreira Gullar, apesar de estar na estrada há muito tempo e ser um poeta consagrado, foi vítima na sua caminhada do contrapé histórico-cultural brasileiro. Foi refém de uma geração tecnológica que dialoga pouco com o passado, com os grandes movimentos culturais que existiram. A chamada Geração Y mal dialoga com a geração que a antecedeu. Some-se a isso o nosso baixo nível cultural e a nossa deficitária educação ― vergonhosamente classificada em testes mundiais.

Ferreira Gullar, aos 80 anos, é o nosso maior poeta vivo ― goste-se ou não dele, da sua obra, dos seus resmungos, crônicas, opiniões, dos seus gatos. Ele travou um importante embate com os concretistas. Os mais otimistas chegaram a aventar a possibilidade de o poeta concorrer ao Nobel de Literatura. Gullar é bem presente na mídia. Escreve semanalmente nos jornais, tem participado com frequência de eventos culturais e do debate político. O poeta não é tão recôndito assim. Além disso, sua figura esguia e a cabeleira incomum são traços muito marcantes. É culturalmente triste para o Brasil o Ferreira Gullar ser confundido nas ruas.

Nota do Editor
Wellington Machado de Carvalho mantém o blog Esquinas Lúdicas.


Wellington Machado
Belo Horizonte, 7/12/2010

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COMENTÁRIO(S) DOS LEITORES
25/12/2010
19h05min
Na verdade, o cronista apresenta uma tese, mas ela é pouco plausível. Não é o que ele chama de pulverização cultural o responsável pelo divertido episódio com o Ferreira Gullar, mas sim a ignorância do jovem: na realidade, o que se tem é uma juventude profundamente ignorante. Se o poeta tivesse sido abordado por pessoas de mais idade, certamente seria reconhecido. Além do mais, antes da internet nem sempre prevaleciam os grandes: quantos nomes se consagraram na música, nas artes plásticas etc. e não passam de mediocridades? A "pulverização cultural" pelo menos abre espaço a todos, e a facilidade de obter informação na Web apenas demonstra uma vez mais a profunda ignorância da juventude, mais preocupada com os bate-papos vazios dos "chats de conversa fiada" do que com o que é de fato importante.
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