O ano já apresenta suas entradas calvíssimas e nós, na sala, discutíamos a alma das cidades. Mas como se define isso? Como capturá-la? No burburinho? Nas pessoas? Nas práticas dos habitantes? No sotaque? Numa índole que só vê quem é de fora? Um nativo pode perceber a mesma alma que eu? Onde está ela? Vista de fora ou vista de dentro? Panorâmica? Na miudeza?
Eu dizia, de saída, que a alma de Belo Horizonte ainda é indecisa. Moro na cidade desde pequena, mas consigo ver que mal se insinua um jeito belo-horizontino de ser (vejam se tem cabimento um gentílico com hífen!). Há estudos românticos sobre uma tal indefinível mineiridade. E adianto que nesta acredito. Ser mineiro é uma construção histórica, terrena, chão, ideológica, com, literalmente, altos e baixos. Já ser belo-horizontino é fugidio.
Começa que já não temos os sotaques de Minas inteira. E são vários. Ao norte, dizem que somos Bahia. A oeste, há um quê do interior de Goiás. Ao sul, vinga a São Paulo caipira. E a sudeste existe mesmo, eu vi, o legendário sotaque fluminense (às vezes o próprio carioca) do Rio de Janeiro próximo. Por onde o trem passa vai arrastado um falar errante, talvez com comércio e com mistura. Já o centro, onde fica mais ou menos Belo Horizonte, fala um sotaque só dali, sem caipirês direito, sem carioquês perfeito, sem baianês seguro. É um revés de tudo, meio sem espaços.
Chegando na capital por qualquer lado, já que ela tem tantas entradas e saídas, chega-se a um emaranhado de possibilidades que podem levar, também, ao Centro. Lá, é possível ver o traçado da cidade planejada quadriculada, positivista, higiênica, de ruas largas, praças sem bancos, luzes elétricas, esquinas frequentes. Lá é a capital dos funcionários, onde alguém logo indica passeios pelo Mercado Central, pela Feira Hippie, pela legendária Savassi, um "bairro" que não existe fisicamente, cartograficamente, mas que é presente na vida dos cidadãos, nem que seja como a representação mais burguesa da cidade.
Qual é a alma desta capital? De uns tempos para cá, vêm tentando fazer engolir um certo jeito belo-horizontino eleito por um marketing de turismo mal-feito, campanha alinhavada com cadeias de hotéis, lá vamos nós assumir que a alma da cidade é dos botecos, da bebida, do pão de queijo com cerveja. Santa Tereza, meu amor, nem só de botecos e botequeiros vive a cidade. E isso é bonito?, alguém se pergunta. Já ouvi de todo lado que "os mineiros que eu conheço bebem muito", vai saber. Que "não tem mar, mas tem bar". Que alma é esta? E a câmara propõe e aprova um projeto, real, que decreta BH a capital mundial dos botecos. Santo Antônio, querido, é, isso mesmo? Vão vender a cidade assim?
Qual é a alma de Ouro Preto? Sim, esta tem alma. Um sentido ouropretano logo surge quando se desce do ônibus, na rodoviária alta. A cidade foi a capital de Minas, antes de tomarem outras decisões. Qual é a alma de Timóteo? Qual é a alma de Juiz de Fora? E a de Uberlândia? Qual é a alma de Minas, lugar de passagem, corredor obrigatório para quase qualquer outro lugar? Qual é o elemento que se constrói no jeito de viver nesse lugar?
O que é a alma carioca? A alma de São Paulo? A alma de Salvador? O que é a alma recifense? A porto-alegrense? Mas separe aí a alma do lugar do marketing que nos é imposto. Veja, separe aí o jeito como vendem a cidade e o que realmente se vive nela. Difícil separar. Qual é a alma da cidade?
Um estrangeiro me dizia, nesta sala, que achou BH uma cidade "completamente sem alma". Será possível, meu Deus? Mas tão habitada! Pode um lugar cheio de gente não ter alma? Ou talvez uma alma tão mestiça de que não se pareça com nada? Quem sabe é isso? Também tenho uma impressão insossa de Brasília, que não parece ter tanta alma assim. Estou sugestionada por algo? Alguma contrapropaganda? Campos de Goytacazes não me parece ter alma, pelo menos não a descubro, mas me garantiram que tem "uma alma terrível". Esse tipo de qualificação pede uma explicação de horas-aula. Como vou saber o que é tão terrível assim? Ouro Preto tem uma alma terrível também, mas posso dizer que a história conhecida pesa muito em meu julgamento. Como não?
São João Del Rei tem alma. Para mim, uma alma limpa, fresca, generosa, que a vizinha Tiradentes não tem. Mas aí é que me vem a questão na contramão: como você vive a alma da cidade? O que é sua vivência da cidade? São João me parece doce. Tiradentes me rememora algo antipático, algo que eu consigo localizar no tempo e na minha história. Já um casal de amigos ama tanto aquele lugar que deu jeito de fazer a cerimônia de casamento lá. Tiradentes é, para eles, uma outra experiência. São Paulo me dá uma sensação que o Rio nunca me deu. Confesso que a alma do Rio só me chega pelos jornais, e não gosto dela. Já outras capitais sequer me parecem ter alma, já que quase não são citadas. Garanto, no entanto, que têm. O que é Fortaleza para mim? E Porto Alegre, tão distantes no mapa? Porto Alegre me lembra tanta coisa boa que a localizei no melhor espaço das minhas lembranças. E que alma dei a BH? Talvez eu saiba mais sobre a alma do meu bairro, que é um ponto na fisiologia da cidade. Talvez seja assim que as almas se componham de verdade: nas nossas vivências, no dinamismo das nossas experiências.
Evidente que a crônica da vida existe na alma das conversas, na ternura artística dos edifícios, na leitura lírica dos jardins, e cada cidade mantém a sua identidade, à qual a mídia se faz míope, não conseguindo revelar a beleza e a alma...
É, Ana, BH tem mesmo muitas almas, e por isso é difícil eleger uma só... Muito bom te ter de volta no Digestivo. Quem foi que autorizou essas férias gigantescas??? Humph! (kkk, inda bem q num te demitiram.) =]