Fingir ignorância sobre fatos constrangedores é regra fundamental para o convívio em sociedade. Pessoas elegantes devem fazer vistas grossas aos maus passos de seus pares que tiverem o bom senso de regenerar-se. A desvantagem é que, com o tempo, a fineza cria um passado "como deveria ter sido" e dificulta a contextualização de certos acontecimentos.
Antes de enviuvar e tornar-se uma verdadeira dama, a escritora Mary Shelley escandalizou a sociedade britânica na segunda década do século XIX. Aos dezessete anos, fugiu com o amante e futuro marido, o poeta Percy Bysshe Shelley, cuja esposa estava grávida, e fez parte do círculo de artistas malvistos cujo centro era Lord Byron.
Aos dezenove, Mary começou a escrever a novela Frankenstein: ou o moderno Prometeu. A primeira edição saiu dois anos depois, sem o nome da autora, mas com uma dedicatória a seu pai, o eminente filósofo anarquista William Godwin, e um prefácio de Percy Shelley.
Embora considerado repulsivo, chocante, assustador e de mau gosto, o livro obteve grande sucesso e críticas elogiosas de pessoas que o supunham trabalho de Godwin ou de Percy Shelley. Mesmo com a revelação da identidade da autora, muitos preferiram continuar imaginando que Mary, uma jovenzinha de pouca instrução formal, recebera o livro de presente do pai ou do marido.
Mulheres jovens que escrevem bem costumam causar espanto, mas são menos incomuns do que se imagina. Na literatura brasileira, temos Rachel de Queiroz e Clarice Lispector. Ambas escreveram seus livros de estreia aos dezenove anos. Entre os homens, os exemplos são mais numerosos em toda a literatura universal.
No caso de Mary Shelley, ainda há quem acentue a participação do marido no aprimoramento do texto, mas, hoje em dia, a interpretação mais popular diz que Mary foi uma garota que escreveu uma história espantosa "quase por milagre". Para a recatada sociedade inglesa, considerar a gênese do livro um mistério é mais um sinal de elegância do que uma opinião digna de crédito. Seria chocante admitir que uma jovem nobre possuísse bagagem cultural e vivência suficientes para conceber tamanha monstruosidade. A própria Mary contribuiu para essa visão mágica, atribuindo a origem da história a um pesadelo.
Suas fontes, no entanto, aparecem claramente no livro. Escritores, filósofos, poetas e historiadores, que Mary estudou sob orientação do pai e de professores particulares, surgem com nome, sobrenome e títulos de obras, nos longos discursos do monstro de Frankenstein. Uma educação formal dificilmente faria melhor pela criação de uma escritora. Godwin criou a filha para ser independente, seguindo, até certo ponto, os ideais da mãe de Mary, a escritora Mary Wollstonecraft, filósofa pioneira do feminismo, que morreu de infecção generalizada, dez dias após o nascimento da filha.
O túmulo de Mary Wollstonecraft era um dos locais onde Mary costumava encontrar-se com o amante Percy Shelley, mas a orfandade, que provocou um fascínio pela vida e as obras maternas, não foi sua maior tristeza. Ao fugir com Percy, em viagem pela Europa, tornou-se uma pária. Passaram necessidades, sofreram com doenças e enfrentaram a perda de uma filha prematura que levou Mary a profunda depressão.
Vale lembrar que "Frankenstein" é o sobrenome do cientista criador do monstro. Outro ponto interessante é que, no livro, o monstro fala até demais. É um ser sem educação formal, abandonado pelo criador, injustiçado pela sociedade e dono de uma lábia espantosa. Muito parecido com a própria Mary Shelley, cujo nome é a repetição do nome de mãe que, ao morrer, abandonou-a.
A enorme criatura quase muda e grunhidora do cinema vem de outra fonte que também inspirou Mary: o golem. Muito comum na literatura alemã, o golem é um boneco de argila que ganha vida através de procedimentos cabalísticos ou alquímicos. Em quase todas as histórias, o criador perde o controle sobre sua muda criatura e é destruído por ela.
Literatura de terror alemã e alquimia eram assuntos tão conhecidos por Mary quanto o mito de Prometeu, outra de suas fontes. Em Frankenstein: ou o moderno Prometeu, a autora retrata o cientista Frankenstein como um Prometeu maligno, muito diferente do glorioso Prometeu libertado, de Percy Shelley. Mary preferiu ir contra o entusiasmo romântico pela ciência e sustentar a visão conservadora de seu pai: a ciência leva à perdição da humanidade originalmente boa.
Optando por uma vida discreta e laboriosa após a viuvez, Mary Shelley, essa moça originalmente boa, que leu e viveu mais do que seria de bom tom, conseguiu seu lugar como dama e escritora.
De todos livros que já li, sem dúvida alguma, "Frankenstein" foi um dos melhores. Há algo de universal na história, no medo de perder o reconhecimento da família ou algo assim, além de todo o suspense e o drama, que faz com que você comece a ler e queira saber sempre o que vem depois. No entanto, acho esse um livro mal entendido em termos de cinema, a considerar suas adaptações. O livro é de terror, mas é menos um terror físico do que emocional (embora tenha lá suas descrições da criatura, assombrosas). O drama é muito forte, a carga emocional é imensa. Não por acaso, foi talvez o livro mais forte que já li (tirando "As flores do mal", de Baudelaire - que nem aguentei ler todo). Recomendo-o de coração aos que sei que apreciam uma boa história para sentir e refletir, e não apenas "viajar".
Ela, me lembrou do Foucault e o que ele achava da disciplina: "um instrumento de dominação e controle destinado a suprimir ou domesticar os comportamentos divergentes." - acho que le pode estar certo!