Uma árvore caiu por causa da chuva forte. O bairro ficou sem luz e minha ida ao cinema, por alguns minutos, pareceu frustrada. Um cinema sem luz. Nunca eu pensara nisso. Sem luz não se tem nada, exceto pelo livro, que independe disso e pode ser lido sob o Sol.
Umas voltas pelas lojas ao redor e a luz voltou. As pessoas comemoraram e o bilheteiro veio avisar que haveria sessão. Mesmo atrasadinha, haveria sessão, para minha alegria e a de mais quatro ou cinco pessoas, naquela tarde cinza.
O filme era José e Pilar, documentário por meio do qual se pode acompanhar o final da trajetória de José Saramago. No filme, Pilar, a esposa mais jovem do escritor mundialmente conhecido, é também personagem central, algo que não costuma ocorrer aos pares de artistas. Veja-se aí a luta de Frida ou as quantas esposas que jamais soubemos existir. Nora, a esposa de James Joyce, que jamais lia seus originais ou mesmo livros, era o oposto da esposa-copista-dedicada de León Tolstói. E onde estavam elas? Sob as páginas viradas, nos colofões ou, menos, nos créditos de foto, às vezes. Mas Pilar está lá, leitora, administradora, esposa e agente. Talvez tenha se tornado uma figura profissional ao lado do marido.
Uma imensa antipatia é o que Pilar provoca, talvez. Meu parceiro de cinema saiu da sessão admirado da arrogância daquela mulher. Saí dividida, assumo. Não achei que a esposa de Saramago fosse algum poço de simpatia, mas nutri por ela uma espécie de admiração cínica. Como se pode ser mulher, leitora, interlocutora, gestora, agente, acompanhante e o nome da rua de esquina? O que significaria dar nome à rua da cidade natal? E por quê? Uma coisa é virar rua porque se é escritor consagrado... outra é ser a esposa do escritor e dar de esquina com ele. E nem no traçado da cidade eles se podem livrar um do outro. Que maldição. Ou será?
Se eu virasse nome de rua ficaria muito preocupada. Vão me matar, vou morrer, virei monumento. Não é assim que se faz com pessoas vivas, bem vivas. Prefiro virar um poema. Pilar era tudo isso. Ela era (e ainda é, porque a literatura não deixa as pessoas se esquecerem) a musa de todos os livros, umas tantas dedicatórias (já tiveste, em vida, uma dedicatória? Experimentaste esta emoção?), uns laivos de personagens e umas tantas frases de amor.
José é tão estrela que nem se preocuparam tanto em tratá-lo como mote total do filme. Pilar, sim, é uma exuberância. Nem sempre doce e sedutora, mas bem-enquadrada e forte. Foi por ela, diz ele, que Saramago não morreu. E creio, piamente, que alguém vivo possa disputar o outro com a morte. E ganhar, ao menos provisoriamente.
Os livros de José Saramago não estão todos em minhas estantes. Alguns, sim. Não cheguei a assistir ao filme originado de Ensaio sobre a cegueira, mas lembro bem da resenha encantada que um amigo me fez sobre a obra de papel. Impressionante. Um dos personagens que mais admiro, e pelo qual mais me apaixono, é um revisor de textos que protagoniza, discretamente, História do cerco de Lisboa, livro que ocupou minha cabeceira por algum tempo e de onde eu ainda retiro citações.
Os livros de Saramago, embora nem bem tivessem muitos pontos-finais, me davam síncopes. Eu vivia interrompendo a leitura, de um modo que talvez ele odiasse. Escritores em ato detestam ser interrompidos. Só mesmo a narrativa o pode fazer, em ondas. Escritores desmancham casamentos quando não são plenamente compreendidos. Mas o escritor deixa ao leitor muitos espaços, falhas, abismos por onde se precipitar. Parei umas tantas vezes de ler porque, a cada frase, os narradores de Saramago me faziam pensar tanto que nem dava para continuar a vida de onde parei. Foi assim também com outros, mas principalmente com ele. Em português, minhas línguas.
Você namorou um escritor? Rapaz, já namoraste uma escritora? Dificilmente. Eles não se dão com o mundo assim. Mas tentaste esta experiência? É ofegante. Mas é preciso dar valor (e demonstrar) a umas tantas coisas que costumam passar desapercebidas para a maior parte das pessoas. Se a existência dos livros e da própria literatura passa, imagine o resto. Já ganhaste uma dedicatória? Não aquela que emplasta livros dados de aniversário, ou CDs. Digo aquela que o autor estampa logo no início de sua obra: "Para você". Nem que seja numa tese, num trabalho monográfico. Já recebeste o presente de ver seu nome no convite da formatura? "Ao Dudu, por ter me apoiado enquanto eu trabalhava". Já? Chorei muito quando não me dedicaram um convite de formatura, tendo eu participado ativamente daquela formação. Chorei. E aquilo era uma incisiva vingança. E foi.
Para Pilar. Era a vida de Saramago que ela gerenciava, não apenas sua obra, mas via-se em tudo sua preocupação em não parecer coadjuvante. Preocupação até incômoda, às vezes, exagerada, forçada até. Ser a sombra não pode ser assim tão simples.
José e Pilar é o álbum dos anos de um escritor consagrado, de um casal consagrado. É, afinal, raríssimo assistir, de longe ou de perto, a uma relação amorosa em que uns e outros ficam à vontade para ser, sabendo se é hora de interromper.
Ana, também tive essa impressão da Pilar. Ela foi mal interpretada por muitos que viram o filme. Acho que sem ela o Saramago teria morrido bem antes. Ele mesmo admitiu isso. Veja o filme "Ensaio sobre a cegueira", de Fernando Meirelles. É uma ótima adaptação do livro, apesar também das várias críticas que recebeu. Acho que o diretor captou muito bem as cenas do livro.
Ana, acabei de ler "Todos os nomes", também de Saramago. Muito bom, mas, principalmente, no início, difícil de ler, acostumada que estou à pontuação convencional. Às vezes me perdi no sentido, outras vezes o sentido se perdeu em mim. Consegui ir em frente, passadas as primeiras 40 dolorosas páginas. Gostei mesmo. Embora dispensasse o final.