Saramago afirma que sim, viveria, repetidamente, ponto a ponto, sua vida de novo, da forma exata como foi. Para ser mais precisa e como dizemos aqui: "sem tirar nem pôr" ou "cuspido e escarrado" (por ora, dispenso os ensinamentos sobre a origem da expressão). E como deve ser bom ouvir isso da boca de alguém. Querido, eu faria tudo de novo. Amor, eu me arriscaria pelas mesmas sendas. Não deve ser fácil ter toda essa disposição. E talvez elas não sejam cem por cento verdade. A vida, como ela é, não passa de ficção, uma narrativa que a gente se conta o tempo todo.
Quantas pessoas diriam "sim" à pergunta? Não sei entre meus parentes e amigos. Talvez meu filho ainda não possa responder. Eu mesma não juntei coragem. O que pensar? Acho que num ponto ou noutro eu remendaria uns espaços em branco. Umas tantas incompreensões ficariam destacadas e eu as reveria. Mania de revisor? O que anda errado aqui? Não sei. Não é que esteja errado. Foi desvio. Onde estava meu caminho que não tive tempo de vê-lo? Nem sempre é questão de enxergar apenas. Vá vivendo, numa levada Lobão: dez anos a mil. Mas ele mesmo já passou dos cinquenta.
Vida de editor. O que a memória faz é editar. O que foi mesmo, nem mesmo a mais fina percepção consegue capturar. Finjo que sei avaliar o que fui e o que sou. Finjo mais ainda saber o que serei. E não consigo responder se faria tudo outra vez. Esta cena antes daquela. O efeito sempre é outro. E se isto? E se deste jeito? "E se" dá sempre em algo irrespondível. Mas dá gosto pensar "e se" de vez em quando. É questão que só incomoda quem não tem certeza de nada. Todo mundo? Dá conforto pensar que se tem qualquer certeza. Por que um caminho está errado? Por que a gente não se sente feliz? Só pode ser. De outro lado, Paulo Leminski, aquele kamiquase curitibano, acertava meus ponteiros: "ninguém nunca chegou atrasado". A frase era algo que o valha, porque minha memória, avessa às decorebas, já editou o texto. Eu estava onde deveria estar, para o que o devir me desse. Assim fica mais fácil viver. Melhor do que pensar de outro jeito.
Não me arrisco a dizer um "sim" muito veemente. Nem sempre. Intermitências. Lembro daqui e dali de uns desassossegos. Uns episódios, esparsos, tudo bem, mas que, provavelmente, teriam mudado tudo, inclusive (e principalmente) o lugar do ápice, a epifania e, mais, a conclusão. The end não seria este. Seria um outro, e termino por julgar: melhor?
O fato é que é linear. Por mais que me deem aulas de física e me jurem que o tempo faz curvas, não enxergo com tanta nitidez o ciclo se fechar. Só depois. E aí, já era. Não adianta, adianta? Quantas vezes quis ver mais adiante para ver se valia a pena? Quantas vezes essa vontade (impossível) me doeu? Quantas vezes tive uma inveja doentia das simulações de computador? Diante de uma tela, posso ver se a disposição dos quartos ficará boa ou se caberão todos os meus móveis. Não, assim não dá. Melhor ficar como estava. Que imenso desejo de que existisse uma tecla "undo", o ctrl+z, desfazer. Se não colou, back.
Inveja do "delete", uma imensa mágoa porque ele não existe entre os escombros da minha memória. Eu apago, mas, em geral, o que minha mente faz é recontar tudo, reelaborar, de modo que nem eu posso mais confiar na narrativa dos "fatos" que penso ter vivido. Quem faria isso melhor do que um ser humano?
Assisto ao Efeito borboleta e quase surto. Mais e melhor do que ele, gasto uma tarde assistindo ao Irreversível e meus dias ficam contados. E agora? Não vou mais sair de casa, pensando na importância (e no impacto) de cada pequena escolha, mesmo quando ela é imperceptível para mim. Mas se eu não sair... também estarei escolhendo um caminho.
E aquela gana irrefreável que dá nas pessoas quando acontece uma tragédia? Logo que o avião cai, o rio transborda, o carro bate, a encosta cede, vêm todos lembrar das últimas palavras, que soam, então, como previsão, profecia e aviso. Bem que ele disse que queria se despedir das plantas. Ela abraçou o cachorro e disse à vizinha que não sabia se iria voltar. Minha mãe me beijou diferente hoje pela manhã. Ctrl+z.
Eu não sei se viveria tudo de novo, deste jeitinho. Provavelmente quereria fazer o caminho que aparecia logo ao lado, para ver onde iria dar. E se pudesse concluir algo, faria ao gênio da lâmpada aquele terceiro pedido.
Eu compraria aquela passagem? Naquele dia? Para aquele lugar? Eu diria aquele sim ou aceitaria aquele convite? Eu daria ou não daria as mãos? Recusaria aquele beijo? Leria aquele capítulo? Furaria o sinal? Beberia mais aquele gole? Deixaria de sair? Eu acho, no final, que não saberia mesmo me repetir.
Ana, faço minhas as palavras de Mario Quintana: "Se me fosse dado um dia, outra oportunidade, eu nem olhava o relógio...", eu viveria muita coisa diferente do que vivi, faria outra vida, afinal, essa eu já experimentei, então por que não consertar o que não foi assim tão bom?
Como não somos "dupla", apesar do subconsciente viver eternamente, fica difícil repetir o que consideramos "erros". Uma simples "falha" do tempo que vivemos e como somos. Portanto, repetir é ruim. Cansa. Desgasta. Sim, eu viveria outra vida. Qual? Outra somente. Apesar de "ter" que aceitar a que vivi até agora. Assim, um misto de aceitação, resignação e melhor, a de submeter a inteligência a outra formulação de viver. Essa é a verdadeira vontade. Pena que não possamos. Estamos atados a uma, de cada vez. Feliz ou infelizmente!
Mil vezes, tivesse poder. Com certeza faria os reparos que se fizessem necessários, e deixaria de casar com meu ex-marido, para evitar as horríveis ofensas advindas. A cada passo, o cuidado de praticá-lo com amor, e assim jamais se arrepender de uma vida que gostaria não findasse, inevitavel que é, e mil vezes a retomaria.
Viver é como subir na escadinha repetindo John Lennon ao encontrar Yoko, e lá em cima deparar com a frase: "Respire". E respirar é compartilhar de esperança para um mundo melhor, é construir com o próximo uma plantação de sonhos, é navegar num lago eterno de peixes, é contar estrelas no céu e amar intensamente, até entender que eternizar também é viver.
Acho que o Saramago estava fazendo tipo. Ninguém gostaria de passar novamente pelos momentos ruins da sua vida, conhecendo-os previamente, a não ser os masoquistas. Como comentou a Maria Anna, por que encarar o ex-marido novamente, sabendo do fracasso futuro? Está certo que evitar alguns dissabores passados não garantiria uma vida bela, pois novos desafios surgirão e com eles poderão vir muitas situações e/ou pessoas desagradáveis. Pelo menos, seriam novas experiências, que poderiam resultar em outra literatura, até com ponto parágrafo.
Eu viveria tudo de novo! O que recebi e recebo de melhor e mais bonito supera as incertezas, as incoerências, os sofrimentos, os tombos, as cabeçadas... Até porque as perdas que sofri são inerentes ao viver! Se a possibilidade trouxer opções para que a minha repetida vida seja melhor, tentarei julgar menos, amar mais, fugir do cigarro e levar a sério (ou à loucura) algumas vivências - nadar mais, viajar mais, aprender outras línguas para ler originais da literatura estrangeira, adotar uma criança... Como ainda aqui estou e não sei o porvir "o acaso vai me convencer...!"
Aha... Outro dia meu marido veio com um papo estranho: "Apesar de tudo, eu me casaria com você de novo!" Como assim? - Perguntei, intrigada. "Porque, apesar de tudo, valeu a pena eu ter me casado com você, então se eu tivesse que escolher de novo, ou voltar atrás, eu me casaria com você outra vez". O que será que ele realmente quer dizer com isso?, pensei. Daí me perguntou se eu me casaria com ele de novo. Fiquei muda. E ele: "Seu silêncio já respondeu. Você não se casaria comigo de novo. Tudo bem. Eu posso conviver com isso. Mas se não fosse comigo, seria com quem?" - Até ler esse texto eu estava intrigada com a tal conversa do meu marido. Agora posso dormir em paz. Rs...
Mais difícil responder o que poderíamos ser do que perguntarmo-nos a respeito, já que somos também "em potência" (mas atualizada apenas com indagação mesma)!
Contudo, a maior parte da vida não vivemos de certezas, mas de estimativas e projeções. Ao se pegar num revólver e disparar contra a cabeça de um adolescente e o matar, por exemplo, não se sabe quanto mais ele viveria se não recebesse aquele tiro. Talvez morresse entalado por uma ervilha no almoço; mas quem comete o ato, se responsabiliza pela série de estimativas e expectativas, em pormenor, que circundavam aquela vida... Nossa indeterminação quanto ao futuro está imbricada com a irreversibilidade do passado - só é certo o que é irreversível! Mas cada qual tem o direito de pagar pra ver o que será de sua própria vida, e nenhum outro! Só é vida porque é apenas uma, se houvesse duas eu já seria um outro. Fazer uma tal pergunta, se viveria novamente a mesma vida, é já, aí mesmo, potencialmente, fazer de si mesmo um outro, um outro feito de si mesmo.