COLUNAS
Quarta-feira,
9/2/2011
A sordidez de Alessandro Garcia
Guilherme Pontes Coelho
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Ele é um escritor que se dedicou ao pequeno em sua primeira obra solo. Ele já participou de algumas coletâneas. Agora, escreveu um livro de contos, chamado A sordidez das pequenas coisas (Não Editora, 2010, 176 págs.). São vinte contos e, para ser mesquinho, para ser pequeno, especifico que três quartos do livro são uma ótima leitura, onde o pequeno faz toda a diferença ― mas permanece, como nos acostumamos experimentar no cotidiano, pequeno.
Amor, memória, morte. Grandes motivos da experiência humana, os mais importantes, talvez, em todos os níveis da vida. Tudo o que criamos está relacionado a um desses totens, senão aos três, simultaneamente, sendo o próprio criar uma manifestação, perdoem a pieguice, do amor. Mas o grande é acachapante, é onisciente, é irrespirável, e viver dele e com ele o tempo todo pode ser a opressão absoluta ― e é partir desta constatação tão bem-vinda quanto nefasta que o pequeno é abraçado em regozijo, que o medíocre é recebido com festa e piadinhas sem graça, e me faz pedir perdão ao leitor por mencionar a palavra "amor", que não vai em itálico mas entre aspas, para lhe mostrar a estranheza que ela causa.
Issara Willenskomer ©
Pois Alessandro Garcia fala do pequeno. Daquele pequeno como mancha, poluindo o que temos de nobre. Como alerta, advertindo a consciência de que, apesar de tudo a que aspiramos, a sordidez é uma companhia pertinaz. Ele fala também do pequeno como a outra face do que tentamos fazer pelo amor, pela memória, pelo medo do fim; e do irremediavelmente pequeno, como no sétimo conto, "Subúrbio", onde as "histórias que as velhas contam umas para as outras (considerações repletas de maldade sobre o que andava fazendo a vizinha no fim da tarde passada) têm que ser narradas aos gritos, porque seus filhos estão berrando na parte dos fundos dos quintais, imersos nos tanques de concreto de lavar roupa, brincando com garrafas plásticas de refrigerante de dois litros, competindo por recordes de mais tempo sem respirar e porque volta e meia o mesmo caminhão de gás gira na quadra e retorna com sua cantilena musical, entoando por alto-falantes a música do mascote da empresa, um tal cachorrinho azul em que se pode confiar".
Nós temos bons autores na área do pequeno (o paradoxo é inerente ao binômio pequeno-grande) e não é de hoje. Principalmente do grande que foi diminuído, apequenado, um traço do nosso humor, devo informar, muito anterior à era dos 140 caracteres. "Marcela amou-me por quinze meses e onze contos de réis; nada menos." O grande apequenado também está nos contos de Garcia. O oitavo conto, "Selmara", foi saborosamente temperado com Nelson Rodrigues, nosso maior mestre em escrever a vileza das supostas bondades e a nobreza dos despudorados. "Selmara", um dos melhores contos do volume, tem muito do amor ao qual nenhum outro qualificativo é apropriado senão o de quase-amor ― uma desqualificação da que se pretende a mais nobre das virtudes. Um casal, Selmara e o narrador, convivem. Apenas. "Sem troca de palavras muito profundas, íamos sempre e sempre nos entendendo, nos usando, servindo um do outro, naquela troca sem fim e, parecia, sem grandes conseqüências."
Contudo, a pergunta, que deveria preceder ao julgamento que sentencia "este casal não se ama", é: há magnanimidade nesta entrega sem brilho mas plena? (Veja aí o protagonismo do amor pequeno.)
"Epifania", o décimo quinto conto, é o pior. "Florencio", o sexto, é o meu predileto. Um conto que, aparentemente, como mais um ou dois do volume, se eleva ao espectro do pequeno e, falando de Florencio, um artista célebre, se veste de testemunho pelo narrador para fazer uma análise da recepção das obras de Florencio pela crítica e como os críticos negociam a apreciação das obras florencianas com a vaidade deles e do artista. "Como separar do meio de uma horda de fraudes intelectuloides aquele que não pretende engambelar o público com meia dúzia de ideias prontas, com meandros enganosos, com meias-voltas confusas e soluções forçadas?" ― pergunta o narrador. Mas Florencio, no fundo, parece ser um artista honrado, que sempre "optou pela mediação, por aceitar ― não com passividade, comiseração ou demagogia, mas como opção mesmo ― as outras possibilidades analíticas sobre a sua obra".
Então, depois do último ponto-período ― "(...) uma multidão que parece não ter mais fim de ansiosos fãs, verdadeiramente cheios de vontade de, em abraços, beijos e afagos, resumir toda a felicidade que somente a obra de Florencio é capaz de lhes proporcionar." ―, é que o leitor percebe que hora alguma o métier de Florencio fora mencionado. Na escala das pequenas coisas, a sordidez alimentada pelas vaidades do mercado subjetivo das artes acaba sugando a energia das manifestações artísticas, a ponto de não fazer diferença se a obra é um livro ou um quadro, uma escultura ou um espetáculo de dança.
O décimo sétimo conto, "Um tio", pode ser considerado o mais representativo do volume. O conto trata dos três grandes temas, amor, memória e morte, como se o narrador, Bajo, estivesse se equilibrando na corda da futilidade ao tentar narrar a morte de um tio com quem mal tinha contato. Bajo encontra a morte mediante o falecimento do tio. Quer exercitar a criação registrando em narrativa o enterro dele. Mas a falta de amor ao defunto obscurece o processo criativo. Os três temas interligados.
O conto também mostra uma das maiores influências do autor, compartilhada por vários contemporâneos, que é David Foster Wallace. É por meio desta influência carregada de metaliteratura que Alessandro Garcia, não direi como, mostra a própria sordidez, às claras, e faz dela criação literária. Um bom livro. Leia.
Para ir além
Guilherme Pontes Coelho
Brasília,
9/2/2011
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