Publicar um texto, hoje, passa quase que apenas pelo desejo do autor. Blogs, redes sociais, portais de jornalismo e de escritores independentes, estão, felizmente, a serviço do texto e de sua divulgação quase instantânea. Eu, por exemplo, li o texto "A rentável miséria da literatura" aqui no Digestivo Cultural, porque recebi, minuto após minuto, tweets que o mencionavam, e geralmente de modo positivo. Foram mais de 1000 acessos, só numa manhã.
Num determinado momento, a repercussão do texto fez com que a pergunta "Por que não transformar os clássicos em literatura de massa?" chegasse à minha tela de computador. Foi aí que parei para escrever, até porque, como disse no início, publicar um texto hoje... "A rentável miséria da literatura" gerou diálogo. Interlocução. Quem leu e passou adiante produziu uma "resposta" ao texto. E este é um dos grandes objetivos de qualquer texto. Que ele seja respondido, da forma como o leitor puder e quiser: citando trechos na internet, recomendando-o a um amigo, buscando outra leitura na área, indo ao dicionário procurar que diabos significa "insurretos", e por aí vai.
Mas a minha pergunta diante desse texto ― a minha "resposta", conforme Bakhtin e outros teóricos da área, ― é: estamos declarando o empobrecimento da literatura com lentes que representam a nossa época? Por exemplo: será que um personagem de Goethe diz algo sobre o que se entende por poemas e "direito à existência literária" nos dias de hoje? E, se concordamos que a literatura está, sim, empobrecendo, quantas outras formas de expressão artísticas não estão ganhando espaço e sendo reinventadas a cada dia?
É natural que algumas coisas percam e outras ganhem espaço na medida em que há uma alteração radical dos hábitos e das formas de interação que conhecemos. Que poder tem um livro, e mais ainda, um clássico, para que chame mais atenção que um "i" alguma coisa? Muito. Mas uma tela de celular oferece muito mais interação do que os livros, da forma como estes têm chegado aos jovens (futuros) leitores.
O que tem sido feito na sala de aula é um caminho atrapalhado, inverso, que afasta os jovens do universo dos livros. Ao invés de trabalhar na árdua e contínua conquista de leitores, a escola os obriga a passar por leituras que pouco lhe dizem respeito e que naturalmente geram um certo repúdio aos livros. Isso sem contar os efeitos sobre a autoestima, visto que grande parte das leituras exigidas são incompreensíveis à maioria dos jovens.
Eis que a escola insiste no erro: Machado de Assis quase sempre surge como uma das primeiras leituras obrigatórias de um adolescente. Mas Machado não representa e não dialoga com quase nada do universo do jovem contemporâneo. Não inicialmente. Não sem um trabalho e um repertório prévios a esta leitura. E mais: o professor prefere ignorar esse estranhamento dos alunos a entendê-lo, discuti-lo, e, para facilitar o processo, oferece leituras qualificadas de estudiosos que explicam o que o autor quis dizer para todos aqueles que não entenderam nada.
Um ponto importante é que a busca e o interesse pelos clássicos devem ser o resultado de muita leitura. Leituras que tenham tido significado para o leitor, que tenham, em algum momento, envolvido o leitor de modo a lhe dizer: "Ei, ler um livro pode ser muito bacana!". Para chegarmos a isso, porém, precisamos de professores que se engajem verdadeiramente na formação do leitor. Se não houver um trabalho escolar cotidiano que estimule e desenvolva o diálogo com o que se lê, dificilmente se chega a formar um leitor de clássicos. Mas também: e, se não ler os clássicos, que problema tem? Os clássicos nunca foram de massa.
O que a maioria dos best-sellers oferece é essa leitura confortável, de iniciante. Nela, não há aprofundamento, tampouco a criação de um conflito no leitor. Porque ler mais e ler os clássicos é também se defrontar com obstáculos, com leituras nem sempre fáceis de si mesmo e do mundo.
Não podemos negar que é algo muito positivo ver o número de leitores sempre aumentando. As livrarias que freqüento estão sempre cheias, e cheias dos mais variados leitores. Os clássicos, os grandes autores, estão, sim, nas estantes e vitrines. Geralmente, com capas bonitas, reedições de luxo, comentadas. Acontece que a maioria sempre acaba escolhendo o livro ao lado. Estes leitores, que não são poucos, estão sendo preparados para que tipo de leitura? Ou melhor: para desenvolver que tipo de relação com o que é lido? Por acaso este leitor dialoga, de fato, com o que está lendo?
Volto à "rentável miséria da literatura": este diálogo que estamos tendo aqui tem como pano de fundo todo um repertório de leitura de ambos os lados. Imagino que todos ou quase todos os leitores do Digestivo Cultural já leram algum clássico. Foram leitores estimulados e formados para ter uma interação efetiva com o que lêem. Mas daí para se cobrar do outro esta mesma paixão pela leitura é algo quase cruel. Porque falta, antes disso, uma escola a lhe oferecer uma base que permita que seja ele próprio a decidir o que vai ler...
Respondendo à pergunta "Que poder tem um livro, e mais ainda, um clássico, para que chame mais atenção que um 'i' alguma coisa?", tem o poder dos vinhos de primeira, que só os paladares apurados conseguem apreciar, enquanto o resto se contenta com cachaça. É preciso bom-gosto, refinamento intelectual, inteligência etc. para ler e apreciar um clássico. O "resto" lê qualquer coisa, quando lê.