O escritor anglo-indiano Salman Rushdie deve ter se sentido aliviado com retirada de sua condenação à morte em 1997. O político e líder religioso iraniano Mohammad Khatami foi o responsável por revogar a pena imposta ao escritor (em 1979) pelo aiatolá Khomeini, devido à publicação de Os versos satânicos. Acusação: a obra era considerada ofensiva ao Islã. Apesar de se ver "livre", não creio que o escritor esteja andando pelas ruas de Nova York ou Londres com total tranquilidade. Nem tudo está garantido em se tratando de fundamentalismo religioso, governos teocráticos ou ditadores. Melhor Rushdie olhar de esguelha, mesmo com suas caricatas pálpebras tombadas, quando andar pelas ruas e esquinas nas grandes cidades.
A mistura de Estado com religião produz atrocidades e hábitos muitas vezes exóticos aos nossos olhos ocidentais. Segundo maior produtor de petróleo da região, o Irã, até 1935 chamado de Pérsia, é também conhecido pela qualidade material e ornamental de seus tapetes e pela produção de caviar(!). Alternando períodos de maior ou menor presença política dos líderes religiosos, foi em 1979 que se deu, sob a batuta do aiatolá Ruhollah Khomeini, a Revolução Islâmica. Na posição de líder máximo (acima até dos líderes políticos), Khomeini ceifou todas as possibilidades de aproximação com o ocidente, levando ao extremo o cumprimento dos preceitos do Alcorão.
Confesso que torci muito pelo Irã durante a guerra contra o Iraque. Ainda na pré-adolescência, não achava justa a invasão de fronteiras em nome do "ouro negro". Além disso, já não simpatizava com o bigode do ditador Saddam Hussein. Mas, em meio a essa turbulência, eis que surge no Irã um sopro mínimo de liberdade nos anos 90. Com a morte de Khomeini em 1989, a ascensão ao poder de dois líderes abriu caminho para um novo flerte com o ocidente. Em 1993, Hashemi Rafsanjani, um líder religioso moderado, foi eleito presidente. E em 1997, Sayed Mohammad Khatami, aquele mesmo que "libertou" Salman Rushdie, chega ao poder prometendo estreitar os laços com o ocidente. Teve total apoio dos intelectuais iranianos. O cinema foi o setor cultural mais beneficiado pelo "sopro de liberdade" política e religiosa do período.
Pode-se considerar que a década de 90 foi um momento único na história do cinema iraniano. Foi quando surgiram para o ocidente vários diretores até então desconhecidos no meio cinematográfico. Mesmo com limitações orçamentárias, carência de equipamentos e atores "diplomados", os diretores se viravam para contar suas histórias. Utilizavam luz natural na maioria das cenas e contratavam atores amadores. O resultado foi um cinema muitas vezes intimista, com narrativas simples de fatos corriqueiros, mas com extrema sensibilidade humana e competência em prender o espectador pela tensão. Apesar da aparência, não há nada de monótono no cinema iraniano. Outras características marcantes do "boom iraniano" foram a utilização de crianças como protagonistas e a maneira de trabalhar o tempo (planos longos e silenciosos), totalmente contra a tendência ocidental de encurtar e acelerar cada vez mais as cenas. Foram realizadas verdadeiras obras-primas.
Em Onde fica a casa de meu amigo? (1987), Abbas Kiarostami deixa o espectador ansioso com a história de um garoto que traz na pasta, por engano, o caderno de um colega de escola. Eles tinham uma lição inadiável para entregar no dia seguinte. O garoto, então, sai à procura do amigo por um bairro desconhecido e paupérrimo, cheio de labirintos. Sua batalha nos lembra a de Ulisses, na Odisseia. Do mesmo diretor, Close-up (1990) mostra a trajetória de um cineasta amador que se faz passar por um diretor famoso. Ele consegue mobilizar toda a região para a produção de seu filme. Quando a farsa é descoberta, o pseudo-diretor é preso. O filme é uma declaração de amor ao cinema. Kiarostami também filmou os belos Através das oliveiras (1994) e Gosto de cereja (1996).
Também revelado nos anos 90, Mohsen Makhmalbaf fez em Gabbeh (1996) um misto de cor, poesia e imaginação. Ancorado nos motivos dos tapetes persas, o diretor mostra o diálogo entre uma senhora e uma jovem (Gabbeh) que se revelou para contar uma história de amor. São do diretor também os ótimos O silêncio (1998) e A caminho de Kandahar (2001). Em A maçã (1998), de Samira Makhmalbaf (filha de Mohsen), duas irmãs adolescentes passam a vida enjauladas pelos pais, que acreditam estar seguindo ensinamentos do Alcorão. As meninas mantêm um comportamento infantil e primitivo, sem o mínimo de socialização.
Também tendo crianças como mote, Filhos do paraíso (1997), de Majid Majidi, talvez seja o mais belo filme iraniano produzido. Um casal de irmãos tem de compartilhar o mesmo par de tênis para irem à escola, pois um deles havia perdido o seu calçado. Eles tinham de fazer toda essa "logística" sem o conhecimento dos pais. A solidariedade entre os irmãos é de emocionar.
A bola da vez no cinema iraniano hoje é Jafar Panahi, o diretor que escancarou a discriminação e a perseguição à mulher iraniana em O círculo (2000). É dele também o belo O balão branco (1995), que narra a história de uma menina que pede à mãe alguns trocados para comprar peixes dourados, às vésperas do ano novo. A garota perde o dinheiro no mercado e vê seu sonho de esfacelar. Panahi fez também O espelho (1997), história de uma estudante que vaga pela cidade à procura da mãe.
Pena que a expressão "bola da vez" não signifique uma exaltação ao talento de Panahi, mas sim uma perseguição imposta a ele. A recente condenação do diretor a seis anos de prisão e mais 20 anos sem filmar simboliza a decadência (imposta) do cinema iraniano. Talvez o cineasta tenha se empolgado com o "sopro de liberdade" dos anos 90 e achado que este seria um processo contínuo e evolutivo. O mais evidente motivo da perseguição foi ele ter apoiado o opositor de Ahmadinejad nas últimas eleições. Os demais motivos são obscuros ou incertos. O próprio Panahi tentou se defender através de uma carta aberta, divulgada na imprensa e na internet, onde apresentou uma porção de mentiras que foram usadas contra ele. Em vão.
O Irã, através de seu cinema, fez brilhar os olhos do ocidente, angariando certo "carinho cultural" pouco comum entre os países da região. Nunca se ouviu falar em boom do cinema iraquiano, libanês ou sírio. Como não se emocionar com a singeleza e a inocência das crianças retratadas no cinema iraniano? Como não se encantar com a humildade do povo iraniano retratada nos filmes, o jeito simples de valorizar a vida fixando-se em pequenos detalhes? O que irrita nas ditaduras ― além de todas as atrocidades, mortes etc. ― é que os mandatários são impiedosos e certeiros ao aniquilar o que temos de mais subjetivo: a nossa sensibilidade. Quando não houver mais motivos aparentes para condenações, acusarão os peixes, os cadernos, as maçãs, cerejas; os tapetes e os balões.
Caro Wellington, como apaixonada que sou pelo cinema iraniano, adorei o seu artigo de hoje, que mostra muito bem o seu desenvolvimento, tanto temático como político. Eu só não diria que houve uma "queda" do cinema iraniano (o que implicaria numa diminuição de sua qualidade), e sim que o cinema iraniano foi literalmente algemado. Os diretores talentosos, que ainda estão livres, continuam aí produzindo como e quando podem, às vezes até no ocidente, como o próprio Kiarostami. Grande abraço, Daniela