Ainda que autores de renome carreguem nas tintas ou encham as bocas para afirmar escreverem não uma história, mas "a definitiva" história de determinados personagens, a verdade é que toda biografia é apenas uma versão (ainda que escrita a partir de dezenas de depoimentos e documentos) e traz apenas lampejos da vida de alguém.
Pense numa distante cena da sua vida: a primeira bicicleta, uma festa de aniversário, um braço quebrado, um coração partido. Recorde o momento, o cenário, personagens e figurantes, diálogos. E agora seja sincero: distante no tempo e no espaço e vista sob a ótica de quem você veio a se tornar com o correr dos dias, o quanto sua lembrança é fiel e corresponde, exatamente, à realidade dos fatos?
Se contar a história alheia com o máximo de fidelidade aos fatos ― que "não são a verdade, mas apenas indicam onde pode estar a verdade", nas palavras da finada jornalista e espiã americana Mary Bancroft ― é tarefa das mais difíceis, o que dizer portanto do desafio de contar a própria história?
"Gostaria de ressaltar também que tudo o que for dito e contado nesse livro será através do ponto de vista da minha pessoa enquanto inserida naquele tempo". É dessa maneira que Lobão ― músico, cantor, compositor, apresentador de televisão e mestre na arte da polêmica ― inicia, depois de mais de duzentas páginas de sua autobiografia 50 anos a mil (Nova Fronteira, 2010, 600 págs.), suas explicações para suas antigas desavenças com o também músico Herbert Vianna. Se assim preferisse, Lobão poderia usar a mesma frase ainda na primeira página de seu livro, quem sabe no primeiro parágrafo. O efeito seria o mesmo e faria o mesmo sentido.
Lobão nasceu João Luiz Woerdenbag Filho, no Rio de Janeiro, em 11 de outubro de 1957. Tímido ao extremo e fruto de um casal composto por uma mãe superprotetora e com um forte transtorno bipolar e por um pai ranzinza e excêntrico, o canídeo supõe que, "pela lógica dos fatos", deveria ter se tornado um bundão.
Entre uma centena de histórias, buscou fugir disso aprendendo a tocar bateria sozinho, acompanhando Ritchie e Lulu Santos no Vímana (lendária banda de rock progressivo que chegou a ensaiar para a gravação de um disco solo do tecladista Patrick Moraz, ex-Yes, antes que a explosão do punk aguasse a proposta), fundando e rompendo com a Blitz, sendo preso por porte de drogas e virando mascote de traficantes, levando a bateria da Mangueira para a linha de frente do Rock In Rio, desafiando as gravadoras e retornando a elas com um acústico que, embora achincalhado pela crítica, terminou premiado com o Grammy Latino de melhor disco de rock do ano de 2007 (seja lá o que esse prêmio hoje em dia signifique).
Depois de alguns anos como apresentador de televisão, Lobão chegou às livrarias no final de 2010 como um fenômeno editorial. A primeira leva de sua autobiografia (que conta também com a valiosa parceria do jornalista Claudio Tognolli em entrevistas e pesquisas de material publicado a respeito do músico ao longo de toda a sua carreira profissional) esgotou-se rapidamente, levando à impressão de uma segunda leva com 20 mil exemplares. Desde janeiro deste ano 50 anos a mil figura na lista de livros mais vendidos do País publicada pela revista Veja.
A biografia tem início com uma cena bastante peculiar: Lobão e Cazuza cheirando cocaína sobre o caixão de Júlio Barroso. Lobão reconstrói o momento, reproduz as falas e detalha elucubrações ― do tipo "É a hora do pastiche e da indulgência. A hora do frenesi dos mesmos cadáveres insepultos de sempre, sugando a juventude dos que nada mais têm a oferecer, além do próprio sangue de barata." ― com a mesma segurança de alguém que tem em mãos um controle remoto, podendo conferir, quadro a quadro, uma situação devidamente registrada. Mas não há registros. E a única testemunha que ainda respira presente na história datada de 1984 é ele, o autor.
Uma das razões para a publicação de 50 anos a mil, aliás, como o músico gosta de repetir em entrevistas e declarações no Twitter, foi o fato de Lobão ter sido extirpado da história de Cazuza, um de seus maiores amigos, levada às telas no ano de 2004. Não sem razão, o cantor acusa os produtores do longa de terem "sanitizado" a biografia do amigo, resultando em um filme muito mais próximo de um capítulo de Malhação que da realidade. O escritor Gabriel García Márquez defende que "a história de uma pessoa não é o que lhe aconteceu, e sim o que ela lembra e como ela lembra". Depois do episódio com Cazuza ― O tempo não para, Lobão decidiu contar o que lembra ser a sua história, da maneira como se lembra de tê-la vivido.
Independente da opinião que se tenha a respeito da irregular obra artística do grande Canis lúpus, é preciso admitir que poucos personagens surgidos na cena do rock nacional da década de 1980 possuem uma história tão rica e peculiar quanto João Luiz. Poucos possuem posições tão polêmicas e fizeram tantos inimigos ― seja no meio artístico, jornalístico, jurídico ou midiático ― quanto ele. Isso, por si só, faz com que 50 anos a mil, embora demore a engrenar (a primeira centena de páginas é dedicada à infância do artista) e resvale, vez por outra, numa espécie de compensação psicoterapêutica (como se o autor aproveitasse suas páginas para expurgar demônios e aliviar traumas), seja um livro pertinente, interessante e recomendável.
Talvez Lobão exagere em lembrar certos fatos, faça uso de "licença poética" para reconstruir diálogos e, não por má fé, adultere certas histórias ― os trechos pesquisados por Tognolli, por exemplo, mostram que o músico, em diferentes momentos, declarou ter começado a usar drogas aos 14, aos 15 e, informação defendida no texto autobiográfico, aos 16 anos. Mas vale lembrar que "toda biografia contém, inevitavelmente, elementos de ficção", como alerta John Stape na introdução da biografia do escritor Joseph Conrad. 50 anos a mil é um livro que não foge à regra.
Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado no siteScream & Yell.