No livro Fahrenheit 451, todos os livros são proibidos e queimados por bombeiros. Tal estado não se deve ao surgimento de um regime autoritário, como em 1984, mas é gerido pela própria sociedade. Todo livro ofendia a alguém, de alguma forma, e a maneira mais prática de lidar com isso foi simplesmente proibindo-os.
Impossível não lembrar do clássico da ficção científica de Ray Bradbury ao ler "A Carta aberta a Ziraldo" e os comentários a ela, publicados no blogO biscoito fino e massa. O texto é assinado por "Ana Maria Gonçalves, Negra, escritora". Este aqui é assinado por "Gian Danton, mestiço, escritor".
O texto é uma nota de repúdio a uma ilustração de Ziraldo no qual aparece o escritor Monteiro Lobato abraçado a uma mulata, pulando carnaval. A ilustração será usada por um bloco no carnaval do Rio.
Muitos leitores reagiram horrorizados à denúncia da escritora. Eis alguns comentários [nota: a grafia deles foi mantida, ainda que com alguns erros]:
"Estou impressionada com esta carta! Nunca gostei de Monteiro Lobato e isso só em assistir o Sitio do Pica Pau Amarelo, nunca havia lido os textos racista dele...agora,me entristesse muito saber que o Ziraldo nada mais é, que uma replica moderna de Monteiro Lobato e me preocupa saber que o mesmo, se encontra presente em uma emissora de TV que se diz estar preocupada com a educação de nossas crianças...lamentável!"
"sinceramente,andei meio desiludida com o parecer favorável a esta obra infâme de monteito lobato (isso mesmo, no diminutivo, tal como sua obra que infelizmente tem e teve efeito destrutivo a todas (os) que leram a mesma). mas, agora, sinto-me revigorada ao ler suas palavras tão profundas e sinceras... quero parabenizá-la e dizer que estou divulgando-á. precisamos nos fazer ouvir e quem sabe um dia, bem próximo eu espero, esta e outras obras que nos fere de morte seja banida de nossa literatura, assim como as charges do não menos racista ziraldo (no diminutivo também)."
"Nossa... estou em choque.Comprei para minha filha, tanto o dvd do Sitio do Picapau amarelo, quanto o do Menino maluquinho. Não sei o que explicar a ela."
E finalmente:
"Sou a favor da censura às obras racistas, seja de que quaisquer escritores! Elas constituem ainda mais sofrimento aos negros!".
Esse último comentário dá a entender que a obra de Lobato foi escrita apenas com o objetivo de difundir o racismo, uma espécie de "Manual do Apartheid". Uma falta tão grave que a leitora se vê atônita com o fato de ter comprado o DVD não só do Sítio, mas também do Menino Maluquinho, de Ziraldo, que ousou desenhar Lobato com uma negra e, portanto, é racista.
E qual é a tese da senhora Ana Maria Gonçalves? Ela se debruçou sobre a correspondência pessoal de Lobato, boa parte dela não publicada (e mesmo a parte de cartas publicadas está com frases cortadas, descontextualizadas e sem referência de páginas que permita ao leitor verificar o contexto), para provar que toda a obra do escritor paulista foi produzida com o objetivo de inserir nos leitores, de forma subliminar, os princípios da eugenia.
De fato, Lobato flertou com a eugenia durante algum tempo, da mesma forma que, durante algum tempo, acreditou que ingerir um só tipo de alimento seria uma forma de melhorar a saúde da população. Não só ele. Grande parte dos médicos do início do século XX acreditavam nos ideais da eugenia. Lobato foi influenciado pela eugenia vinda dos EUA, país onde viveu como adido comercial. A eugenia prega o melhoramento genético da humanidade. Pessoas com doenças genéticas, por exemplo, deveriam ser proibidas de procriar como forma de evitar a propagação de doenças. Do ponto de vista racial, a eugenia acreditava que a mistura de raças seria prejudicial, pois, ao se misturar duas raças, sobrariam apenas as piores características de cada uma. Embora acreditassem que a raça branca era superior à negra, acreditavam também que a mestiçagem era a pior opção, fazendo com que as duas raças entrassem em degeneração a partir da mistura. Ao contrário da vertente nazista, a eugenia norte-americana não pregava a matança de raças, mas via como algo negativo a mistura entre elas.
A se acreditar na proposição de Ana Maria Gonçalves, a obra de Lobato seria muito mais ofensiva a mim, que sou mestiço, do que a ela, que se diz negra. Curiosamente, ela usa o argumento da eugenia para provar que a obra de Lobato atenta contra o povo negro, e não contra os mestiços. Ou a senhora Ana desconhece o que é eugenia, ou faz de conta que não sabe.
A carta aberta foi muito elogiada por sua suposta cientificidade. Mas um conhecimento mínimo de metodologia científica permite perceber que o texto tem tantos furos quanto uma peneira (além do fato óbvio de que uma leitura da obra de Lobato do ponto de vista da eugenia seria muito mais ofensiva aos mestiços).
Senão, vejamos. A se acreditar que a escritora quis ser científica, ela usou o método hipotético-dedutivo. Partiu de uma hipótese: "Lobato é racista e sua obra foi escrita com o objetivo de difundir os preceitos da eugenia". Pela lógica científica ela deveria tentar provar que essa hipótese está errada. É o teste do falseamento.
Criar uma hipótese e tentar provar que ela está certa é fórmula para provar qualquer coisa. Eu posso, por exemplo, dizer que minha coluna provoca infecção intestinal. Bastaria encontrar um único entre meus leitores com infecção intestinal e pronto: minha hipótese estaria certa. Para ser científica, a senhora Ana Maria deveria tentar provar que Lobato não era racista e que sua obra não difundia a eugenia. Se não conseguisse, poderia, sim, dizer que a hipótese sobreviveu.
A simples coleta de citações descontextualizadas tem tanto valor científico quanto dizer que os desenhos animados da Disney foram feitos para difundir a adoração ao diabo. Pior: a citação de cartas demonstra que a escritora se debruça menos sobre o que Lobato escreveu e mais sobre qual teria sido a intenção dele ao escrever. Além disso, a falta de referências impede o leitor de buscar o verdadeiro contexto em que as frases foram escritas.
Para sustentar a tese da escritora, uma leitora, entre aplausos, requentou a velha história de que Lobato foi contra o modernismo: "Monteiro Lobato foi, sem dúvida, um homem de seu tempo. Não avançou um centímetro do pensamento estabelecido pela elite conservadora do Brasil. Basta reler 'Paranóia ou Desmistificação', no qual ele desce o pau nos Modernistas da Semana de 22". Esse é o caso de uma mentira que, contada milhares de vezes, torna-se verdade. Lobato nunca escreveu contra a Semana de Arte Moderna. Ao contrário, ele era amigo pessoal de vários modernistas e publicou muitos deles.
Oswald chamava Lobato de "O Gandhi do modernismo", e dizia que o autor do Jeca Tatu só não participou da Semana por causa do nacionalismo: "sua luta significava a repulsa ao estrangeirismo afobado de Graça Aranha, às decadências lustrais da Europa podre, ao esnobismo social que abria seus salões à Semana".
A crítica à exposição de Anita Malfatti não era pela inovação trazida pela pintora à arte brasileira, mas ao estrangeirismo. Nacionalista radical, Lobato acreditava que se devia procurar criar uma arte com estética e temas brasileiros. Mas, no mesmo artigo em que critica Malfatti pelo estrangeirismo, ele diz que a moça tinha talento, tanto que a chamou para ilustrar a capa dos livros O Homem e a Morte, de Menotti Del Picchia, e Os condenados, de Oswald de Andrade, ambos lançados por ele. O livro Ideias de Jeca Tatu teve como capa O Homem Amarelo, quadro de Anita Mafalti.
A versão de que Lobato teria sido contra o modernismo aconteceu por conta de um texto em que Lobato creditava a liderança da Semana de Arte Moderna a Oswald de Andrade. Enciumado, Mário de Andrade passou a vender a versão de que Lobato era contra os modernistas e chegou a anunciar a morte de Lobato, que respondeu: "Mário é grande. Tem o direito de nos matar à moda dele".
Ou seja: a versão de que Lobato foi contra o modernismo (um dos comentários diz que Lobato escreveu contra a Tarsila!) é fofoca misturado com preconceito, mas os leitores, sob aplausos da escritora Ana Maria Gonçalves, a usam porque serve a seu argumento de que Lobato era um reacionário e, portanto, racista.
Não é a primeira vez que tentam ver mensagens subliminares na obra de Lobato. Na década de 1950, um padre escreveu um livro intitulado A literatura infantil de Monteiro Lobato ou comunismo para crianças. Segundo o padre, o fato de Lobato privilegiar a explicação científica e não religiosa para a criação do mundo era demonstração cabal de que ele era comunista e sua obra tinha sido escrita com o objetivo de arregimentar adeptos para o comunismo internacional.
A carta aberta de Ana Maria faz parte de um processo recente de inquisição a obras lidas por crianças e adolescentes. Toda a obra do quadrinista norte-americano Will Eisner, por exemplo, foi banida de muitas escolas por causa de dois quadrinhos, um em que uma menina aparece levantando a saia para enganar um zelador e outra em que aparece a costa nua de uma mulher.
Também recentemente um jornalista argumentou que a Turma da Mônica seria um estímulo ao bullying, já que a Mônica bate continuamente no Cebolinha com o coelho de pelúcia.
Nesse processo de inquisição, muitas obras ainda devem ser analisadas e banidas das escolas: Nelson Rodrigues e Will Eisner pela pornografia, Mário de Andrade por ser antidemocrático (da mesma forma que Lobato flertou com a eugenia, Mário de Andrade namorou com o fascismo, o que, seguindo a lógica de Ana Maria Gonçalves, se refletiria em sua obra), José de Alencar por mostrar os índios sempre como submissos aos brancos, Machado de Assis pelo machismo (existe obra mais machista que Dom Casmurro?), Euclides da Cunha por preconceito contra os nordestinos, Lima Barreto por difundir ideias socialistas e antipatrióticas, Charles Dickens por difundir o preconceito contra os judeus, Maurício de Sousa por estimular a violência entre as crianças...
Procurando bem, em qualquer obra sempre existe algo que ofenda a alguém. No livro A memória vegetal, Umberto Eco lembra de um sargento que se sentiu ofendido por ter visto os sargentos em uma lista que incluía tecelões, garagistas, salsicheiros, virgens, confessores e doentes em coma profundo. Ao ler uma crônica minha sobre um bêbado que apronta várias confusões em um ônibus, um bêbado escreveu uma carta de repúdio argumentando que eu estava promovendo o preconceito contra os bêbados.
Até mesmo o texto de Ana Maria Gonçalves pode ser visto como preconceituoso ― contra os mestiços. Sua implicância com a ilustração de Ziraldo não seria reação ao fato da imagem mostrar uma possível miscigenação entre um escritor branco e uma negra?
Gian, eu não tenho uma visão acadêmica do fato, como você, que magistralmente abordou o tema. Eu, por minha vez, fui apenas um leitor de Lobato sem me aperceber desses detalhes tão acalorados, hoje nas mídias... Mas, há algum tempo, de forma acadêmica, Lobato, como vários outros autores da nossa Literatura, já vinham com análises conceituais sobre suas obras, portanto a abordagem daquela senhora não foi novidade alguma... Eu vejo isso, apenas, como uma forma de "espelho". Sem fazer qualquer acréscimo à sua peça, no contexto de Lobato, há muito o que se olhar e a compreender melhor nas representações sociais daquele momento histórico... Não seria óbvio pensar que a obra espelharia como o autor enxergava e revelaria a maneira de pensar de um observador que era um intelectual (e empresário)? Na época, na sociedade "real", as relações não eram marcadas por hierarquias das ascendentes classes sociais?
Interessante, seu artigo. Gostaria de comentar esse trecho apenas: "Embora acreditassem que a raça branca era superior à negra, acreditavam também que a mestiçagem era a pior opção, fazendo com que as duas raças entrassem em degeneração a partir da mistura. Ao contrário da vertente nazista, a eugenia norte-americana não pregava a matança de raças, mas via como algo negativo a mistura entre elas." O movimento sulista norte-americano Ku Klux Klan se inspirava em teorias eugenistas. Era ponto pouquíssimo questionado o pressuposto de que a raça branca seria superior às outras, e a mestiçagem seria ruim principalmente por comprometer a melhor raça, ou seja, a branca. Eis um dos argumentos que justificavam a vinda de migrantes europeus ("brancos", dizia-se) para "melhorar a raça brasileira". As teorias eugenistas certamente não são um grande obstáculo aos genocídios. Os nazistas também não pretendiam exterminar judeus: essa ideia lhes ocorreu ao longo da IIª guerra.
Para começar a discussão, apenas esclareço que a "identidade" de alguém pode ser política. Eu, por exemplo, que por um tom de pele claro sou percebida por "branca", possuo uma identidade política negra. Talvez seja o mesmo caso da escritora Ana Maria Gonçalves. Mas sobre isso apenas ela poderia afirmar. Sobre seu texto: reitero absolutamente tudo apontado por Cyrano. Seu texto apenas demonstra uma total ausência de conhecimento, principalmente o científico, sobre as temáticas do racismo, etnicidade (cuja a qual a questão racial está inserida), a questão da "mulata" no contexto brasileiro, as reivindicações dos afro-brasileros dentro dos movimentos sociais e por aí vai. Um texto vergonhoso, sem embasamento teórico algum, texto de opinião leiga e que, infelizmente, ainda é lido, aplaudido e serve até de incentivo para TCC´s. Para a querida leitora que foi incentivada ao TCC: leia Kabengele Munanga (etnicidade, racismo), leia Sueli Carneiro (fundadora do Geledés)
Leia Jurema Werneck (fundadora de CRIOLA), Lélia Gonzalez (principal expoente do movimento feminino negro), leia Joan Scott sobre relações de gênero, Sônia Giacominni sobre a situação da mulher negra na escravidão, releia a história do nosso país com outros olhos, com uma postura crítica e estabeleça um diálogo coerente destes autores atuais e pontuais com a obra de Monteiro Lobato. Descontrua os preconceitos e opiniões pessoais para então produzir um conhecimento científico questionador e inquietante como deve ser o mesmo. Boa sorte em teu trabalho e que ele sirva de contribuição para um país menos desigual. Ao autor deste texto, se for de seu interesse, aproveite as dicas de leitura. Abraço, Fabiana.
Fabiana, obrigado pelo comentário. Eu tenho o maior orgulho de ser mestiço e acho que a beleza e a força da população brasileira é justamente a variedade de cores. Acredito que a junção de raças é o que Brasil tem de melhor. Sinto muito se você achou meu texto vergonhoso, mas respeito sua opinião. Obrigado pelas dicas de leitura. Ler é sempre bom, concordemos ou não com os autores (pena que nem todo mundo pensa assim). E retribuo com a indicação do livro A lógica da pesquisa científica, de Karl Popper. Um livro fundamental para quem vai fazer pesquisa usando o método dedutivo. Um abraço.
Bianca, obrigado pelo comentário. Que bom que meu texto ajudou você a decidir pelo tema do seu TCC. Aconselho a ler A lógica da pesquisa científica, do Popper. Fazer pesquisa sem usar o imperativo ético do falseamento pode ser muito perigoso, como Fredrick Werthan, que "provou" que a deliquência juvenil era provocada pela leitura de gibis escolhendo os casos que lhe interessavam.
O que atormenta aos "puristas" é o fato de se saberem "donos" da verdade de como as crianças lêem os livros de Lobato. Eu, por exemplo, sentia o prazer enorme nas "aventuras" deles todos e, também, dos salgados e doces da Dona Benta. Como criança, lia e aprendia a ser criança, não com a percepção de adulto, como agora, cheio de manias e fobias. E querem saber, adorava aquela época, sem ser saudosista. Aprendi muito com ele. E quanto a ser mestiço, bem, sou negro disfarçado de branco, já que o meu pai era mulato (filho de mãe índia/negro, minha mãe branca filha de portugues com brasileira). Viu só, sou "agente" secreto da "pura" e "clara" eugenia. Longe para sempre os meus sete irmãos, quatro "brancos" e quatro mulatos. Santa mistura. Será que o que escrevi é verdade?!!! Parabéns Gian.
Cilas, você tocou num ponto importante: ninguém é dono da forma como as pessoas lêem um livro, um filme, uma história em quadrinhos. A área de pesquisa de processos midiáticos analisa exatamente como a leitura é livre e, muitas vezes foge até dos objetivos do autor da mensagem. O Tio Patinhas, por exemplo, é visto pelos pesquisadores marxistas como propagador da ideologia capitalista, mas um amigo meu lia, adorava e dizia que, para ele, aquilo era uma sátira do capitalismo selvagem.
Socorro! Conceito de "raça" não existe cientificamente. Somos todos a "raça" humana. É incrível perceber que, nas relações humanas, apenas a tecnologia evolui e integra - ao passo que o cérebro de muitos continua na época dos tempos da segregação. Vamos evoluir! Vamos todos ser humanos - o que implica todas as nossas diferenças. A igualdade está no direito a ser diferente, em todos os sentidos.
Débora, concordo plenamente com você: a igualdade está no direito de ser diferente, ler autores diferentes, ter opiniões diferentes... pena que nem todo mundo pense assim. Obrigado pelo comentário.