Aposto que você já assistiu ao desenho animado Motor mania, aquele com o Pateta nos papéis de Sr. Pedestre e Sr. Volante (ou Mr. Walker e Mr. Wheeler). Essa obra-prima diverte e faz sucesso desde 1950, seja nas incontáveis reprises da TV ou nas várias apresentações em escolas infantis e autoescolas.
Como tenho um xodó por esse desenho, prefiro pensar que nós, os sortudos - a despeito de traumas, arranhões e pinos de platina -, devemos a essa lavagem cerebral o milagre de viver até o próximo acidente. Afinal, nosso trânsito ainda mal se compara ao caos indiano, cujas emoções se medem em sustos por minuto. Ainda podemos piorar e, graças a outros exemplos vindos de certos filmes, games e parentes, estamos à toda nessa direção.
Desde a infância percebemos que os adultos mudam de personalidade quando dirigem. Tornam-se mais autoritários, impacientes, implicantes e podem chegar à violência verbal ou física. Se esses motoristas são pessoas estranhas, aprendemos a vê-los como "barbeiros" que dirigem "feito uns doidos" e deviam perder a carteira de habilitação. Mas, quando são nossos pais, percebemos a alteração emocional como o surgimento de uma identidade secreta e heroica. Ao volante, nossos pais, que vivem reclamando da vida, tornam-se poderosos e combatem as forças malignas da lei, representadas por policiais, que impõem limites à velocidade divertida.
Crianças adoram velocidade. Entregue um carrinho de brinquedo a um menino e ele imediatamente encenará uma corrida com cantadas de pneus. Entregue dois carrinhos e a cena será uma colisão com direito a capotagens e explosão. Assim brinca a maioria dos meninos desde antes dos games de corrida. Não é, portanto, de se admirar que pais velozes e furiosos encham seus filhos de orgulho.
Nosso trânsito já chama a atenção do meio acadêmico. Na revista Pesquisa FAPESP, um artigo de Carlos Haag, com o título "Fé na modernidade e pé na tábua" aborda o tema. De acordo com o antropólogo Roberto DaMatta, citado no artigo, "o carro vira um instrumento de projeção da personalidade do seu dono e um índice de ascensão social e capacidade de consumo: uma ofensa ao automóvel equivale a uma ofensa ao seu motorista".
Alguém duvidaria dessa afirmação? Nas ruas, a sociedade se apresenta dividida entre os insignificantes pedestres e os poderosos motoristas. Como em toda batalha, resta aos vencidos conformar-se ou vingar-se através do humor. Um exemplo de conformismo é a adivinha popular "Qual é a diferença entre um playboy muito rico e um pedestre?". Resposta: "O playboy tem carros de muitas marcas e o pedestre tem marcas de muitos carros".
Os delírios de vingança assumem até a forma de lenda urbana. Muitos paulistanos juram ter visto a lendária cena da "velha da sombrinha" na Avenida Paulista. Muda o estado, muda a avenida elegante, mas a história varia pouco: um motorista costumava fazer poucas e boas com seus carros importados, pela avenida e os policiais não podiam impedir porque o sujeito era rico. Um dia, ele parou bem no meio da faixa de pedestres, obrigando as pessoas a desviar dele. Mas eis que surgiu uma velha pedestre vingadora e encheu o carro do sujeito de sombrinhadas. Os policiais nada fizeram além de rir.
De origem verdadeira ou não, a história divide as opiniões em qualquer mesa de bar. Uns apoiam a velha, outros juram que a matariam se o carro lhes pertencesse. Para mim, o interessante é que a lenda parece ter se originado e difundido não entre pedestres comuns, mas entre policiais. As forças da lei andam fartas de baixar a cabeça e sofrer humilhações. Nenhuma propina compensa totalmente o desejo de ver um poderoso se dando mal.
Se você for um otimista compulsivo, talvez prefira continuar acreditando na versão de Motor mania: o Sr. Motorista é, no fundo, no fundo, um pedestre gente boa, que passa por surtos frequentes, mas volta ao normal, quando sai do carro. Infelizmente, a observação me diz que não é mais assim. Em pouco tempo, a personalidade motorista ganha força e acaba por predominar mesmo quando o sujeito se encontra longe do carro.
Observe como as pessoas se movimentam nos shoppings das grandes cidades. Os carros ficam no estacionamento, mas os eternos motoristas andam às pressas, atropelando uns aos outros, ocupando o máximo de espaço possível. Sem a armadura proporcionada pelo veículo, isolam-se fisicamente, colocando as mãos na cintura e projetando os cotovelos para fora, ou usam os carrinhos de bebê para abrir caminho à força. Costumam parar de repente, obstruir o caminho e andar para trás, quando bem entendem. Se caminhassem assim, nas ruas, entre pedestres de verdade, acabariam levando sombrinhadas de alguma velha vingadora.