Exatamente às 2h30 do dia 25 de janeiro de 2011, nasceu meu primeiro filho.
A despeito da enorme tentação de tratar desse fato que, para mim, é motivo de grande celebração, o impulso para escrever não veio da paternidade, mas da inesperada convergência dela com o urbanismo.
O filho, muitos já devem saber, muda a relação dos pais com o tempo. No início, não existe mais noite completa de sono. A cada duas ou três horas você é chamado para cuidar da criança: trocar fraldas, dar de mamar, ou simplesmente confortá-la em seus braços.
E foi por conta dessa nova rotina que, sem perceber, eu e minha esposa nos tornamos observadores da cidade. Não somos fofoqueiros, desejosos de captar cenas indiscretas, mas lançamos mão de um viés crítico, como analistas urbanos. Essa nova atividade não se dá por uma excentricidade, mas emergiu da leitura recente do livro Acupuntura Urbana, de Jaime Lerner (Record, 2003, 140 págs.). Com sua "orientação", passamos a apreciar as redondezas da cidade e descobrir seus encantos e desencantos de uma perspectiva muito mais cuidadosa do que no ir e vir apressado de sempre.
Jaime Lerner não escreve: ele dialoga, traduz em texto um bate-papo, com direito a divagações e também a muita, muita informação técnica. Fala sobre um permanente aprendizado urbano, a formação de uma memória, e também uma forma de admirar aquelas idiossincrasias que, acredite, só a sua cidade vai ter. Ainda que se possa argumentar que vivemos um período de padronização, com tantas franquias, redes de lojas e shopping centers, sempre há espaço para o reconhecimento de diferenças, a partir de cada configuração específica de cada localidade.
Se antes a hora de dormir era marcada pelo fim do episódio do sitcom favorito, agora não há mais rotina, e um dos programas prediletos passou a ser "assistir" ao lento apagar das luzes das lojas que encerram mais um dia de atividade. E assim vemos o clarão dos letreiros se dissipar lentamente, num espetáculo que varia de uma janela para outra. A cada dia temos uma cena que difere na posição de observação e no horário, de acordo com o momento no qual o bebê "decide" que temos de andar pela casa.
Da mesma forma, as manhãs agora são povoadas pela sinfonia das portas de ferro que vão se abrindo; primeiro o jornaleiro, depois o restaurante que recebe os ingredientes muito antes de chegar o primeiro freguês e então o resto do comércio, tudo isso contrastando com o discreto trancamento das portas estreitas que dão acesso a um ou outro "night club"...
Jaime Lerner fala sobre tudo isso: sobre o prazer de ver a cidade, sentir a cidade com suas cores, cheiros e sons. Fala sobre as mudanças que podem ser feitas para se enfrentar o desafio de viver nela, mas também de coisas que devem ser preservadas, chegando a citar um caso cuja única alternativa era "não fazer nada, com urgência".
A sua didática do olhar não se restringe ao distanciamento: com a mesma facilidade que trata do plano urbanístico, dos sistemas de transporte coletivo, também nos estimula a andar pelas calçadas, gerar identificação com pontos de referência. A partir dessa perspectiva, começamos a "explorar" o bairro no qual moramos há mais de um ano, para só agora aprendermos quais são as lojas com atendentes mais simpáticos, o melhor lugar para comprar frutas, os estabelecimentos que oferecem tudo de que necessitamos ― desde roupas de bebê até móveis de escritório, a farmácia com as melhores promoções, e o local onde o caixa sempre insiste em errar o troco da compra ― sempre a menos... Nesse relacionamento com a cidade, você passa a ser parte dela, irremediavelmente, e assim se importar mais com a qualidade do serviço de coleta de lixo, com a presença ― ou ausência ― dos guardas municipais, com a irresponsabilidade dos motoristas que estacionam bloqueando as rampas de acesso às calçadas etc. O carrinho e os produtos a serem comprados para nós e o bebê passam a ser, quem diria, instrumentos de medição da qualidade do nosso tecido urbano e da civilidade dos nossos pares!
Merecem destaque três temas aos quais Lerner dá atenção: locais com grande circulação de pessoas ― como praças, parques e mercados municipais; preservação da memória da cidade e revitalização urbana. Quem mais, além de um grande mestre, poderia ter desenvoltura para discorrer com precisão e poesia sobre temas tão amplos? Mais do que isso, os capítulos do livro não são construções frias: são narrativas dotadas de técnica mas também de sensibilidade. Ele tem esse dom, de trazer para a conversa exemplos do mundo todo, com a mesma naturalidade que teria ao descrever a cena que vê ao olhar para a sua vizinhança.
Além de observar o todo ― a cidade ― e as partes ― lojas, praças, prédios históricos, feiras etc. ―, a obra trata também do olhar dedicado às pessoas. Fala da necessidade de haver solidariedade, gentileza, de haver espaços para a interação. Confesso que nos vimos refletidos em suas observações, fortalecendo o desejo de tornar a comunidade mais amiga, de saber o nome do barbeiro, do dono da banca, do vendedor de bolo de aipim, de descobrir quantos filhos tem o infinitamente paciente dono da lanchonete da esquina, de ajudar a carregar as sacolas da senhorinha que faz compras no mercado próximo, de participar do abaixo-assinado para que a prefeitura limpe os muros pichados dos poucos casarões históricos que resistem ao tempo.
Jaime Lerner me deu uma bússola preciosa com seu livro, meu filho de meu a oportunidade de experimentar esse recurso, de testar novos caminhos, até de me perder nessa cidade que, desde aquele 25 de janeiro, aprendi a admirar. Jamais imaginei que meu filho e Lerner trabalhariam juntos.
As cidades são feitas de fluxos. Sejam as cidades "carnais" ou as "virtuais". Fluxos de pessoas e de meios de transporte pelas ruas e calçadas. Fluxos de luzes que acendem e apagam. Fluxos de sons. Fluxos de calor e frio pelas sombras e insolações. Fluxos de emoções que coisas vivam experimenta e emanam. Parabéns pela sensibilidade de perceber isso. Abs Cabral