"O ódio tem sua cristalização; mal temos a esperança de nos vingar, começamos a odiar"(Stendhal).
É com pesar que observamos a emergência de certa patrulha antirracista, grupo de pessoas de intenções insondáveis, que busca caracterizar esta ou aquela pessoa como racista e assim pugnar pelo seu ostracismo. Recentemente, Monteiro Lobato, Ziraldo e Maurício de Souza tiveram enquadradas suas obras como racistas, enquadramento este que é elogiado e comemorado tal como a Ku Klux Klan celebrava mais uma vítima de sua loucura.
Façamos um breve, mas necessário, ajuste terminológico valendo-nos do dicionário Houaiss. Por discriminação entende-se a faculdade da pessoa discernir as diferenças entre duas ou mais coisas. É um ato neutro que realizamos diariamente sem maiores consequências. Quem sofre de problemas digestivos, discrimina o que deve ou não comer. Quem tem a obrigação de prestar contas da quantia gasta, discrimina os itens da despesa e o valor de cada um. Por preconceito compreende-se, segundo a mesma obra, "o julgamento ou opinião concebida previamente", ou ainda melhor, "opinião formada sem fundamento justo ou conhecimento suficiente". Aqui, sim, o ato de discriminar, quando somado ao preconceito, atinge feição perniciosa. O que nos leva, por exemplo, ao racismo, à "discriminação baseada na inferioridade de certas raças".
Desta forma, o ato de discriminar aliado a um preconceito de base étnica leva ao racismo. A discriminação aliada a teorias que comparam os sexos e concluem pela superioridade do homem ou da mulher deságua no sexismo. Mostra-se homofóbico quem discrimina uma pessoa em razão de sua orientação sexual. Talvez o termo "classista" seja o mais adequado para nomear quem distingue as pessoas em razão de sua origem sócio-econômica. Salientemos que não é inerente ao preconceito uma pretensa desvantagem. Sendo fértil a mente humana, novas formas de diferenciação malsã podem ser encontradas.
Percebemos que a discriminação em si não é o problema. No Brasil, por força de lei, o idoso é aquele com idade igual ou superior a sessenta anos. Atingido este patamar, são-lhe conferidos direitos como o transporte público gratuito e a primazia nos trâmites processuais. Há distinção, mas dela não decorre cerceamento de direitos. Da mesma forma, por questões históricas, tradicionais e culturais, os quilombolas têm reconhecido o direito de permanecer nas terras que ocupam e de nelas manterem-se conforme aprouver-lhes. Evidente que o mesmo não será admitido em relação a quem invade um terreno vazio, constrói uma edícula e apresenta-se como proprietário.
Em cada período da História podem ser encontrados traços de discriminação nociva. Vencedores e vencidos, dominantes e dominados, cultos e bárbaros, cristãos e hereges, fiéis e cristãos, nobres e burgueses, brancos e negros, brancos e brancos, negros e negros, doutrinários e antidoutrinários... Ao homem, sempre faltou-lha capacidade de enxergar a Humanidade como um povo único, sendo-lhe necessário separar conforme critérios sempre imprecisos.
Louis Agassiz
A teoria da superioridade racial começou a ser definida no século XIX, e encontra sua maior expressão no livro Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas, do diplomata francês Joseph Arthur de Gobineau (1816-1882). Suas pretensões ao escrever eram científicas, pois seriam baseadas nas observações feitas inclusive no Brasil entre 1870 e 1871, quando aqui esteve a serviço de Napoleão III, e aqui ficou mui protegido da guerra franco-alemã. Como em diversos países a escravidão ainda era uma realidade institucional ― hoje ela ainda é uma realidade fática, mas não jurídica ― a própria sujeição sofrida por um grupo étnico talvez servisse de fundamento para alegação de superioridade do outro. Algo como "caso alguém invadisse nossas terras e tentasse nos subjugar, resistiríamos. Como eles não resistem e deixam-se dominar, decerto não compartilham de nossa origem. Logo, são seres inferiores e a mistura de sangue pode causar nossa própria degeneração". Cerca de cinco anos antes de Gobineau, viajou pelo interior do Brasil o geólogo e zoólogo suíço Louis Agassiz (1807-1873), que também empenhou-se em criticar a mistura de raças e comprovava suas teses apontando para nosso povo de então.
Em texto intitulado As limitações do método comparativo, de 1896, o antropólogo Franz Boas já considerava ultrapassadas as alegações de imposição cultural de um povo sobre o outro, preferindo a visão de "intercâmbios culturais". Uma população interfere n'outra e ambas saem modificadas, salvo em caso de extinção total. Recebesse ele maior atenção, e as teorias raciais do século XIX não adentrariam o seguinte. Contudo, Gobineau e seus partidários fizeram maior barulho e conseguiram adeptos em maior número e em posições sociais privilegiadas. Lembremos das correntes nacionalistas existentes na Europa do mesmo período. Não sendo a exaltação do próprio povo algo que se deva reprimir, mencionar a questão da raça é aproximar o veneno da fonte inócua. Defender que o seu povo é superior e que a raça a qual se pertence deve prevalecer significa que o veneno foi entornado e o mal disseminado. A teoria de qual dos dois ― Boas ou Gobineau ― serviu de base para o nazismo e qual foi "executada"?
Queremos mesmo recomendar o livro Antropologia Cultural, organizado pelo professor Celso Castro, contendo cinco textos de Boas. Entre os quais, Raça e progresso, de 1931, no qual o antropólogo germânico passa em revista as teorias da época e no qual observamos que, si ele ainda trabalha com o conceito de raça ― Gregor Mendel ainda estava em baixa ― também observa não haver povo que não tenha sofrido qualquer tipo de miscigenação, mormente como consequência de ocupação bélica. Desculpe-nos quem se esmera na defesa do próprio pedigree, mas para não misturar-se com os demais mortais e sustentar a crença n'algum privilégio de nascimento deverá encontrar base mais sólida para esta ilusão que se esvai.
O século XXI começou com uma certeza: não há raças humanas geneticamente distinguíveis. Extraído o pretexto cientificista, todo e qualquer embate limita-se ao terreno ideológico. Justamente a renovação de ideologias que já deviam ter sido abandonadas é que pode perverter a reflexão sadia sobre as descobertas científicas. De nossa parte, superamos a perspectiva racial e temos certeza de que, no dia a dia, convivemos com pessoas e não com cores. Toma-nos um certo pasmo quando a questão vem à tona: ainda estão escarafunchando sobre isso?
Os antirracistas, quando alegam proteger direitos de oprimidos e vencer barreiras através das chamadas "ações afirmativas", nada mais fazem além de, primeiro, impedir que uma ferida cicatrize e, segundo, permitir que o contraponto também se julgue no direito de expor seu ponto de vista. Um partido nunca debate sozinho, e como de um lado temos antirracistas, do outro teremos, fatalmente, defensores de teses contrárias, como a exemplo dos neonazistas. Deveras, antirracistas e neonazistas comungam este defeito: apegam-se a teorias prejudiciais do século dezenove e dão-lhes atenção imerecida. Estagnam-se na tese, inviabilizando o advento da antítese e da consequente síntese. Em vez de deixarem a ferida cicatrizar, revolvem-na tal como varejeiras, extraindo daí o seu sustento. Em decorrência deste raciocínio, chamamos a atenção para a inadequação de vocábulos como "mestiço", "mestiçagem" e "miscigenação", pois se não há raças, não pode haver cruzamentos ou hibridismo.
Franz Boas
Mas não é correto lutar contra a discriminação originada na questão racial? Esta questão é reducionista, mas tentaremos respondê-la. Primeiro, em vez de "queimar cartucho" combatendo a discriminação, é preferível promover a igualdade, algo ao nosso ver muito mais abrangente. Quando houver um foco, resolva-se o problema específico, através dos meios legais existentes. Por um caso isolado, não se pode remediar toda a população. Para combater uma doença de forma generalizada, a Medicina recorre à vacinação preventiva. Para combater de forma generalizada um mal como a discriminação negativa, a única prevenção efetiva é a Educação, quer doméstica, quer escolar. Acrescentamos que, exigir concessões a um grupo humano em consideração à perseguição sofrida significa estimular a questão racial a partir da perspectiva do oprimido e também permite o surgimento de novos modelos de expressão discriminatória. Em artigo intitulado "As novas formas de expressão do preconceito e do racismo", os acadêmicos Marcus Eugênio Oliveira Lima e Jorge Vala ― aquele sergipano, este lisboeta ― falam do "racismo moderno, do racismo simbólico, do racismo aversivo, do racismo ambivalente, do preconceito sutil e do racismo cordial". Em outro artigo, Andreas Hofbauer discorre a respeito d'As ações afirmativas e o debate sobre racismo no Brasil, concluindo que "este enrijecimento (recrudescimento na discussão) pouco tem contribuído para aprofundar a compreensão dos mecanismos e das causas dos processos discriminatórios no Brasil". Ambos os textos podem ser localizados, na internet, mediante buscadores especializados para o público acadêmico.
Nossas reflexões originaram-se da leitura da "carta aberta" endereçada ao cartunista Ziraldo por escritora que não encontrará nesta coluna a publicidade procurada. O trabalho dela resumiu-se em extrair das cartas pessoais de Monteiro Lobato toda a baboseira que ele disse a respeito da eugenia e da defesa do racismo. Nossa edição d'A barca de Gleyre, epistolário d'onde constam os trechos citados, data de 1968 e divide-se em dois tomos. Concentrou-se ela de tal forma em pinçar o que havia de reprovável, que se esqueceu de abordar todos os aspectos da questão. Além disso, reacendeu em nós o aborrecimento nascido com a polêmica a respeito de Caçadas de Pedrinho, obra denunciada como racista por outro desconhecido ao Conselho Nacional de Educação.
Lobato nasceu em 1882, seis anos antes da escravidão ser extinta no Brasil. Todos sabemos que a assinatura do decreto imperial foi apenas um passo, e processo muito mais longo foi ― e está sendo ― o da mudança de mentalidade. O escritor nasceu em meio escravocrata e cresceu aprendendo como natural o tratamento conferido ao negro "liberto". Soubesse a "escritora" quem foi Vygotsky e seria muito mais cuidadosa. Negativo acréscimo, Lobato tomou contato com toda teoria racista e eugenista então em voga. Somente com o fim da segunda guerra mundial é que teve consciência do que defendia e fez um mea culpa no prefácio para o livro Afinal, quem somos?, de Pedro Granja. Como sói acontecer em discussões tendenciosas, a "carta aberta" não menciona este prefácio, do qual citamos o seguinte trecho:
"Pede-me V. um prefácio para este livro e eu tremo! (...)AFINAL, QUEM SOMOS? É o título da obra, e já aí sofro o primeiro esbarro. Eu poria, AFINAL, QUE SOMOS? O 'quem' da primeira pergunta indica que somos gente ― mas seremos gente, Pedro Granja? Os horrores de Dachau e Buchenwald me deixam incerto. Talvez sejamos apenas coisas vivas. E neste caso a pergunta seria: Que coisa, na ordem universal, é esse bichinho que ora se revela como S. Francisco de Assis, a pregar amor aos peixes em vez de pesca-los, ora como aquela Irma Griese que num campo de concentração nazista amarrava as pernas das prisioneiras grávidas, para que morressem nas dores horrendas de um parto impossível?"(grifos do autor).
Da pena de Monteiro Lobato fluía diretamente o que pensava. Quantos hoje pensam exatamente a mesma coisa que ele, mas não se expressam apenas por medo de sofrer alguma perseguição, estimulando assim o comportamento hipocritamente correto? Lemos toda a obra infantil de Lobato antes dos doze anos. Segundo a "escritora", deveríamos automaticamente promover a eugenia e divulgar o ódio racial. Nosso cotidiano revela o contrário. A solução não está na exclusão das obras ou na rotulação. O educador pode muito bem promover na sala de aula a leitura dos textos apontados como críticos, explicar as influências sociais sobre o indivíduo e levar o aluno a refletir sobre quais influências está absorvendo e avaliá-las. Esta atitude é mais inteligente do que ensinar a resolver um incômodo pelo simples afastamento. Em nossa vida pessoal, a compreensão de que somos todos irmãos, filhos de um mesmo Criador e o mandamento de "não fazer ao outro aquilo que não queres feito a ti" foram de efeito muito mais profundo e duradouro que as teses ininteligíveis destes pseudoacadêmicos tratados com tomate seco.
E mais uma vez o antropocentrismo toma corpo: uma "ciência" politicamente correta, e discutível, afirma que não há raças entre a espécie humana, ou seja, o homem é tão superior aos outros animais que só ele não se divide em raças - mesmo contra todas as evidências. Enquanto a discussão se mantiver neste contexto, e não no do direito, o blá-blá-blá será sempre o mesmo. Deve-se entender que todos, independente de sua raça, têm o direito a viver no mundo, já que nasceram nele e nele estão adaptados. Outra questão: a da superioridade racial. Para se falar em superioridade, deve-se ter um paradigma segundo o qual alguém é superior, e o paradigma, quer gostemos ou não, existe, logo há superioridade racial. Mais uma vez, a questão é de direito e não de discurso politicamente correto: TODOS, independente de serem mais inteligentes, mais bonitos, etc. têm direito a viver em paz. O resto é conversa fiada.