Um dia imaginei um mundo sem amarras nem mordaças, em que não dependeríamos de um click para abrir as grades de nossa própria casa, nem da caixa registradora para comprar um pé de alface. Onde todos cooperassem nas mínimas situações cotidianas, cuidassem dos próprios jardins e se sentissem aptos a realizar as mais diversas e simples tarefas, em vez de delegá-las.
Tal mundo é tão inconcebível que chega a ser difícil pensá-lo objetivamente, de maneira que massacraríamos suas possibilidades antes mesmo de tentarmos compreendê-las. Não se trata em absoluto de que todos sigam a mesma religião ou ideologia. Trata-se de algo igual e ao mesmo tempo inédito em sua concepção: vivermos mais ou menos como já vivemos, tratarmos de tocar nossos afazeres, só que sem salário, sem cartão de ponto, sem lucro, sem moeda nem esmolas.
Podemos chamar na linguagem que conhecemos em algo como "espírito coletivo". Não se trata de trabalho voluntário, muito menos carregar nas costas o fardo do que dizem ser o papel do Estado, da prefeitura ― bom que se lembre ―, mas de um trabalho de si, para si, dos outros e para todos. Diz respeito, enfim, em fazer o que precisa ser feito, consumir o que precisa ser consumido, não necessitar mais de cercas e baias, nada mais do que chiqueirinhos infantis em tamanho família. E como podemos saber tudo isso com exatidão? Como discernir diante do capricho e das necessidades prementes? Onde termina o meu espaço e começa o do outro? Ser espaçoso, passar os outros para trás a fim de se levar vantagem não tem lugar neste mundo perseverante das ideias bem acabadas e dos sonhos realizáveis.
O amor com amor deverá se pagar, ou melhor, se retribuir. Assim, desde os desiludidos do coração vão entrar em extinção, até os que buscam feitiço para trazer de volta a pessoa amada. Estes vão se encontrar, talvez sem as delongas dos fricotes, e agradecer por não ter se concretizado o descabido que um dia desejaram. Reparem que será uma era de entendimento mútuo facilitado por um espírito de boa vontade generalizado. Não tentem denominar com velhas palavras este sistema, ou modo de vida. Que se criem santuários de cobaias, que não se trucidem homens em nome de ideologias.
Como podemos ver, parece que é mais fácil dizer o que este mundo não é do que o que ele é. Pode ser que trabalhar com pares antitéticos seja uma boa forma de se fazer compreender, já que ninguém nunca o viu para poder dizê-lo e quem começa a imaginá-lo vai se rebelar antes que ele possa tomar seus mínimos contornos. É por isso que este mundo além do óbvio não pode existir senão em um delírio ― a sua realização não é possível pois sempre haverá discordância e escárnio diante dele. Então, ainda não é tempo deste mundo, o qual deve encontrar uma total sintonia de relações e funções, entre o querer e o ter, o dar e o receber.
Algumas situações e exemplos práticos.
1) vai-se ao supermercado, pega-se leite, bolachas, iogurte, guaraná, caviar. E não se paga nada por isso. Entretanto, não é porque é de graça que vamos pegar de tudo, esvaziar as prateleiras, estocar. Ainda que não de todo gratuito, mas com descontos na venda dos produtos para seus membros é o que já vem acontecendo no The People's Supermarket, em Londres. Em troca você deve trabalhar algumas horas no supermercado, abastecendo as prateleiras, atendendo no caixa etc.
2) anos atrás li em um blog, creio que da Soninha, que sempre que via lixo no chão ela pegava e jogava em seu devido lugar. Por que não fazemos o mesmo? É claro que neste mundo ideal não haveria necessidade disso, pois simplesmente ninguém atiraria papel de bala da janela do ônibus ou deixaria entulho ou poda de plantas na calçada. Quando moramos em um prédio há sempre alguém para tirar nosso lixo, limpar o chão dos (nossos) corredores. E se as tarefas aqui também fossem divididas? Cada morador limpa o chão de seu corredor uma vez por mês. Pois se há sempre alguém para ganhar pouco, outros para sobrefaturarem o preço dos materiais, e fazer o que achamos que não podemos fazer, nem temos tempo, ainda estamos longe de um mundo mais compartilhado ― diferente desse em que algumas tarefas são tidas como indignas e outras como maravilhosas, rentáveis ou intelectuais.
E quando vemos formas disparatadas mesmo no mundo real, além da normalidade espúria? Vejamos o recente apoio de um grupo de estudantes da USP às reivindicações justas dos funcionários terceirizados da limpeza. Por que os alunos não catam o lixo e limpam o chão e as escadarias puídas para chamar a atenção da reitoria e da mídia em relação ao assunto? Os alunos demonstrariam em pequena escala uma tentativa de sociedade cooperativa, em que todos podem assumir diversos papéis. Enquanto eles limpam por algumas poucas horas os banheiros, corredores, tiram o lixo, os faxineiros assistem aulas. Se já não houvesse o Programa Universidade para Todos, acho que cairia bem aqui seu nome. Em vez disso, em um motim festeiro alguns contribuem com a sujeira que se alastra na faculdade. Na certa parece mais bonito e rebelde como forma de protesto virar as latas de lixo e sujar os corredores da FFLCH com papéis e borra de café. Convenhamos que dá menos trabalho do que varrer e limpar. Nada disso precisaria ocorrer naquele mundo em que tudo é dividido e inteiro ao mesmo tempo.
Texto bem argumentado e escrito: convicente, eu diria.
Acho legal ter contato com outras opiniões até pra entender melhor outras visões de mundo e poder criticá-las de modo mais certeiro.
Embora a autora divague de forma interessante sobre o mundo melhor - quando imagina o "tratarmos de tocar nossos afazeres, só que sem salário, sem cartão de ponto, sem lucro, sem moeda nem esmolas", ela, no decorrer do texto, deixa bem claro, intecionalmente ou não, que pensa em mudanças radicais, mas dentro da ordem em que vivemos. Uma contradição absurda, temos que falar.
Não é uma posição chocante - no sentido da inovação - querer transformar o mundo (com os milhares de problemas da fome, guerras, miséria, homicídios, repressão, etc.) sem abalar a ordem social em que vivemos. Na verdade, eu acho que a maior parte das pessoas que se preocupam durante toda a vida com as questões sociais veem a coisa dessa forma.
É como se, para que a sociedade fosse igualitária, bastasse uma vontade benévola generalizada em todos os cidadãos de um país, ou do planeta. Será que para mudar o meio social em que vivemos basta um querer-bem a/por todos? É aí que entra, ao meu ver, o maior (e mais antigo) debate sobre o assunto. Sendo bem franco, eu amaria se a sociedade moderna pudesse alcançar o seu "apogeu de solidariedade" apenas por pequenas boas práticas no cotidiano (não que eu discorde delas ou que ache que elas não contribuem para nada) de cada pessoa, mas tratar os problemas da atualidade por esse caminho me parece ser uma reformulação sofistacada (no sentido de que quer condições de vidas iguais para todas as pessoas) do pensamento liberal, que aponta o indivíduo como o último culpado pelos seus atos. Não que eu pense que as pessoas não podem ajudar umas as outras dentro da ordem que vivemos, mas penso que as pequenas ajudas não arrancarão a mais simples das raízes do caos e da miséria deste mundo.
A maior prova do caráter liberal do texto é o final - que, na verdade, parece-me ser a "solução basilar" indicada pela autora. Depois de defender um mundo mais justo, sem salários, sem exploração, etc, a autora diz que a atitudade em apoio a greve de uma categoria da classe trabalhadora (no caso dos funcionários terceirizados da limpeza) é uma atitude egoísta e preguiçosa. Bem... como assim? "Ah, porque os estudantes poderiam fazer a limpeza do espaço que eles mesmo usam". E como isso ajudaria os funcionário terceirizados da universidade?
Ao meu ver, a greve dos trabalhadores não tem como causa "a sujeira em demasia que os estudantes fazem na universidade". Mas são questões salariais (de acordo com vídeos e textos que li) que, na minha ótica, não podem ser solucionados se não pelo embate com quem os emprega, já que apenas pedir/implorar por um aumento do salário não adianta, como bem sabemos. Fazendo um esforço fantasioso, poderíamos até perguntar pra que serviria o trabalho dos que fazem a faxina se todos que utilizam a universidade não as deixasse com um pingo de sujeira. Pra quê faxineiros onde não existe sujeira? Mergulhando a fundo no imaginário da autora (que acha que os grandes problemas podem ter soluções minúsculas), e se vivessemos no Fantástico Mundo de Bobby, poderíamos ter, como consequência dessa educação integralmente higiênica dos estudantes, a eliminação dos empregos dos faxineiros.
Claro que não quero dizer, com essa argumentação, que eu acho que os universitários têm mais é que sujar as salas de aula e os corredores porque isso dá emprego q pessoas que precisam. Eu só não vejo com incoveniência o apoio a manifestação dos trabalhadores da limpeza pelos estudantes. Na verdade, penso eu, trata-se de um dos tipos de práticas sociais com maior "teor" de solidariedade da sociedade em que vivemos, se quisermos construir "um mundo sem amarras nem mordaças".
obs: sendo o texto muito grande, quis pontuar as questões que me pareceram mais interessantes de por em discussão... peço perdão pelo tamanho do texto!
Novidades sempre causam espanto e perplexidade. E assusta. Quem sabe? Já não houve tempo sem dinheiro, na base do escambo? Texto curto. Aprovação total o da autora. Abraços!