COLUNAS
Terça-feira,
3/5/2011
As cores de Pamuk
Wellington Machado
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"O ponto de partida da verdadeira literatura é o homem que fecha a porta e se recolhe com seus livros". A frase foi proferia pelo escritor turco, Orhan Pamuk, em seu discurso durante a entrega do prêmio Nobel de 2006. Recolhimento, reclusão, foco em leituras e na escrita. Assim se construiu ― e se mantém ― Pamuk.
Recolhido diariamente em seu escritório, Ohran Pamuk vive em meio a milhares de livros, objetos pessoais, rascunhos, canetas, cadernos; várias histórias contadas e muitas outras a narrar. Da janela do escritório, o escritor tem uma vista privilegiada: o Ocidente. Um continente inteiro na outra margem do Estreito de Bósforo.
Essa "fissura", que divide Istambul em "lado ocidental" e "lado oriental", não é uma mera divisão geográfica. O estreito separa, grosso modo, o "legado" turco (árabes, Oriente Médio, ditaduras, desertos, petróleo) da Europa (democracia, desenvolvimento econômico e tecnológico, liberdade religiosa etc.).
O Bósforo simboliza também a grande dúvida vacilante do povo turco: ocidentalizar-se ou não? A proximidade com a Europa faz da Turquia o país de maioria muçulmana mais "influenciado" da Ásia. O país vem, aos poucos, se credenciando política e economicamente para fazer parte da Comunidade Europeia.
Ler Outras cores (Companhia das Letras, 2010), de Orhan Pamuk, é adentrar nesse recolhimento pessoal a que ele se referiu no discurso do Nobel. O livro é uma reunião de pequenos textos (ensaios, contos, anotações sobre o cotidiano, memórias etc.), que podem ser divididos genericamente em escritos pessoais, literários e políticos.
Pamuk abre e compartilha sua valise com o leitor. Nota-se um autor metódico, extremamente dedicado em lapidar seus textos, com um notório prazer em narrar ― ao contrário de muitos escritores, para quem o ato da escrita é um sofrimento. Além da atividade literária, o escritor é um intelectual politicamente engajado. Não hesita em emitir suas opiniões acerca dos rumos políticos da Turquia. Muitas vezes paga caro pelo que fala, pois ainda paira no país uma certa ditadura velada.
Motivado pelas leituras dos clássicos e pelas constantes viagens à Europa e aos Estados Unidos (onde leciona regularmente), Orhan Pamuk procura levar uma vida "de ocidental" na Turquia. Ao contrário de uma parcela resistente do povo turco, o escritor não vê problema em consumir produtos industrializados no Ocidente, principalmente produtos americanos. Paumk é globalizado, contemporâneo, antenado nas transformações sociais, tecnológicas e políticas dos novos tempos.
Em Outras cores, Orhan Pamuk fala sobre suas manias e rituais quando se põe a escrever. Mostra seu método para construir seus roteiros, esquemas, que resultam em romances. Relata o seu imenso prazer em contar histórias. Em um dos seus escritos pessoais, uma curiosidade: Ohran poderia ter sido um grande pintor ― tinha habilidade para tal; pintava desde os sete anos. Mas aos 22, deu uma guinada e decidiu seguir a carreira de escritor.
Pamuk também fala sobre seu estilo, marcado por frases longas e cuidadosamente construídas, que geralmente resultam em calhamaços enormes. Nota-se que o escritor é um fervoroso herdeiro de As mil e uma noites. O autor é profícuo, diz nunca querer terminar um livro. Vem da infância essa sua maneira de narrar infinitamente.
Sentado à mesa em seu escritório, situado a poucas quadras de sua residência, Pamuk escreve incansavelmente à mão, utilizando uma caneta-tinteiro. Trabalha de dez a doze horas por dia, intercalando idas à janela para ver os turcos apressados na rua, e para se deleitar com o pôr-do-sol alaranjado do outro lado do Bósforo.
As cores, aliás, são metáfora para os prazeres diários do autor: as leituras, a satisfação ao escrever, a convivência com os filhos, as viagens. Essa veneração em ver tudo colorido, como se a vida pulsasse a cada segundo, parece ser uma fixação do escritor, haja vista os nomes de seus livros: O castelo branco, O livro negro, Meu nome é vermelho, Neve e Outras cores.
Nos textos de cunho literário, Pamuk relata suas experiências e emoções na leitura dos os grandes clássicos. Reverencia Dostoiévski, Nabokov, Proust, Thomas Bernhard, Vargas Llosa e Camus. Ohran é um eterno "releitor". Retoma sempre a leitura dos cânones ― já está na quarta (re)leitura de muitos deles.
Ao versar sobre suas releituras, o autor sempre as compara com as leituras anteriores, como se quisesse apontar ― e defender ― os "acréscimos" proporcionados pela nova leitura. Sua formação de leitor tem no pai uma figura fundamental, pois ele viajava constantemente para a Europa e trazia os clássicos (em inglês) para o filho. O surgimento de Ohran Pamuk para o mundo foi um rebento, pois a Turquia sempre foi um país de poucos leitores. O leitor turco, para ele, "é uma aberração [exceção]; e não uma norma".
Ao contrário de muitos autores, Pamuk não lê "só" por prazer. Ele é um árduo defensor das leituras "por dever". Leituras dos livros herméticos, inovadores em sua linguagem; dos livros "de ruptura", que enriquecem o arsenal de qualquer escritor. Mas também exalta ― chega a invejar ― os autores que escrevem de maneira simples, agradável, mas ao mesmo tempo com exatidão e profundidade.
Três capítulos de Outras cores são dedicados a Dostoiévski, seu maior ídolo, ao que parece. Mas nota em Memórias do subsolo uma certa implicância do autor russo com tudo o que vinha da Europa ― assim como os turcos conservadores. Elege Os Demônios o melhor romance político de todos os tempos.
Dos contemporâneos, Pamuk cita várias vezes o escritor Mario Vargas Llosa. Não hesita em afirmar que já leu todos os seus romances. Sobre os ensaios do autor peruano, afirma que "Llosa é bom até quando discordamos de sua opinião".
A reflexão sobre a situação política da Turquia é recorrente em Outras Cores. O autor aborda a situação de "democracia incompleta" vigente no país. Existem ainda casos de perseguições políticas, torturas, assassinatos na calada da noite, e pouca liberdade de expressão. O autor mesmo foi processado pelas autoridades turcas por uma entrevista que concedeu a um jornal estrangeiro, na qual criticava o conservadorismo da Turquia e a sua lentidão em se tornar um país realmente democrático.
* * *
Um bom complemento a Outras cores, para pensar a questão política na Turquia, é o livro anterior de Pamuk, Neve (2006) ― considerado seu romance mais politizado. Nele é narrada a saga de um poeta turco que retorna à sua cidade natal (Kars), após um período de sete anos na Alemanha por conta de um mestrado. O personagem principal, Ka, uma espécie de alterego do escritor turco, retorna à fria Kars para cobrir um fenômeno estranho: os recorrentes suicídios de moças na região. Uma série de reportagens seria feita pelo poeta para um jornal alemão sobre o fenômeno.
Com uma capacidade de narrar extraordinária, Pamuk delineia o ambiente (geográfico, político e religioso) e as personagens (com intricadas relações políticas e afetivas), fazendo-nos lembrar de Stendhal, em O Vermelho e o Negro. Há dois conflitos em Neve: um religioso e um político.
O primeiro se dá na justificativa dos suicídios. Com os ecos democráticos do Ocidente reverberando no país, o governo determinou o fim do uso do manto para as mulheres. Evidencia-se, portanto, um conflito entre secularistas (governo, escolas, "ocidentalizados"), favoráveis ao fim do uso do manto, e fundamentalistas islâmicos, resistentes em abrir mão do uso da vestimenta. As moças suicidas fazem parte dessas famílias conservadoras, defensoras da "pureza religiosa". As moças se matam porque não admitem tirar o véu.
E a questão política é abordada diagonalmente na figura de Ka, o jornalista-poeta. Ele passa a ser perseguido (ditadura velada) quando o governo se dá conta de que o episódio dos suicídios pode ser divulgado internacionalmente, através da reportagem enviada ao jornal alemão. Ao mesmo tempo tem de transitar entre os fundamentalistas. A presença de Ka na cidade incomoda e motiva o acirramento de antigas questões de poder conflituosas, provocando um cenário de assassinatos, perseguições e sumiço de estudantes.
Pelo que se lê em Outras cores, Pamuk é um autor dividido. De um lado está o ficcionista, recluso em seu escritório, lendo seus clássicos ou escrevendo as histórias que sua imaginação fértil cria com invejável facilidade; de outro há o homem político, retratado também em Neve, buscando um país mais culto e moderno. Apesar da ainda capenga liberdade de expressão na Turquia, o escritor continua desafiando o poder e publicando seus livros e emitindo suas opiniões políticas. Não pensa em sair do país, pois afirma estarem ali suas raízes. Sonha um dia chegar às margens do Bósforo, olhar pra frente e continuar vendo o Ocidente; e olhar pra trás e ver um Oriente mais democrático.
Para ir além
Wellington Machado
Belo Horizonte,
3/5/2011
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