Hoje em dia o gênero conto não passa de um subproduto literário. Não digo subliteratura ― vocês nunca ouvirão isso da minha boca ―, mas subproduto mesmo, algo que se tornou limitado e se presta a um papel restrito dentro de um cenário muito mais abrangente.
No Brasil, lugar de contistas fantásticos, o conto virou apenas um trampolim para jovens autores (que vão estrear mesmo com um romance no ano seguinte) e uma vitrine para os consagrados, que vez ou outra escrevem histórias curtas a pedido de jornais e revistas, ainda que se dediquem mesmo ao romance.
Isso deve ter a ver com o que pensa o mercado editorial, que acha um erro um escritor enveredar por uma carreira de contista (palavras de uma das editoras mais importantes do País). O mercado (leitor) não quer saber de histórias curtas, os livros não vendem e uma promessa da ficção pode acabar no limbo por conta desse erro estratégico.
Quando vejo a quantidade de jovens escritores que se lançam com livros de contos, penso que isso é uma grande balela. Só aqui no Sul, há um número muito grande de jovens contistas que prometem. O jornal Rascunho mesmo, em sua edição de número 132, listou seis desses novos contistas, que reafirmaram suas crenças no futuro do gênero.
Mas, quando se olha em perspectiva, um pouco mais à frente, quando as promessas já se tornaram realidade, parece ser mesmo inevitável a mutação que transforma o contista em romancista. Dalton Trevisan e Rubem Fonseca parecem ser os únicos escritores brasileiros que ainda tem o adjetivo "contista" atrelado aos seus nomes. Sim, Fonseca é também romancista e Trevisan escreveu um romance (A Polaquinha, ao seu estilo, claro), mas ambos são reconhecidos essencialmente como mestres do conto. Essa relação estreita com o conto, no entanto, é cada vez mais rara. É difícil encontrar um escritor que lançou, nos últimos anos, três ou quatro livros de contos em sequência.
Mas o conto já contou com dias melhores. Quando Truman Capote era apenas um jovem promissor, foram os contos que fizeram dele um escritor. Nos anos 1940 e 50, Capote publicou uma grande quantidade de contos em revistas como Mademoiselle, Harper's Bazaar e Esquire. Naquela época, claro, os contos tinham bem mais importância, falavam-se deles como hoje se discutem filmes e best-sellers. Foi assim que Capote caiu na boca da crítica e do público ― e nunca mais parou de escrever contos, apesar de seus romances de sucesso.
E foi um conteporâneo de Capote o responsável por elevar o conto a um patamar ainda mais alto, em termos de prestígio editorial e crítico. Em 1978, John Cheever figurou por seis meses na lista de mais vendidos de best-sellers do New York Times com a coletânea The stories of John Cheever. O livro ainda ganhou três grandes prêmios literários, entre eles o Pulitzer.
E, lendo os contos do livro que a Companhia da Letras acaba de lançar, com o título de 28 contos de John Cheever, entende-se por que o escritor americano fez tanto barulho com um livrinho de contos.
Cheever equipara o conto àquilo que de melhor já foi feito no romance. Aquela história de que ele transcrevia a alma americana só pode ser verdade, mesmo eu não sabendo direito como é a alma americana. Mas todo mundo sabe o que é a classe média, com seus dramas sentimentais, suas contas a pagar, seus vícios, fetiches, desilusões e frustrações.
Então é isso que basta para ler e gostar de Cheever. Pois essa faixa da população mundial parece ser igual em qualquer parte do mundo ocidental, pelo menos. E Cheever vai fundo em sua radiografia. O egoísmo do ser humano floresce de suas histórias como ipês no auge da primavera. As famílias estão sempre no limiar da desintegração, quando já não se depedaçaram.
Cheever, um alcóolatra pesado, também encharcou suas histórias com gim e uísque, as bebidas oficiais da classe média americana no Pós-guerra. A guerra, ou o medo dela, ajudam a tornar ainda mais inseguros seus instáveis personagens. Cheever sabe a medida certa de cada história. O homem consegue juntar tudo de importante que um conto precisa: personagens autênticos, um bom argumento e aquele suspense que vira surpresa no final da história. Fora que o cara parece nunca errar as palavras que vão formar suas frases. Nada falta, nada sobra. É tudo na medida.
Cheever escreve em primeira ou terceira pessoa com a mesma eficiência. Se quiser ler um relato corrosivo da família americana do interior, vá direto em "Adeus, meu irmão", em que um final de semana de férias é o bastante para revelar que rusgas do passado demoram mais a cicatirzar quando há laços sanguineos na jogada. Cheever desmorona um a um os integrantes de uma família aparentemente normal: o narrador é bobo, o irmão mais novo é uma pessoa detestável e misantropo, a irmã é levemente promíscua e a mãe alcóolatra.
Mesmo sendo um escritor, digamos, realista até o cerne, Cheever deixa a mente escapulir e, não raramente, bota uma dose de surrealismo em suas histórias, como em "O enorme rádio", em que uma família consegue sintonizar as conversas de seus vizinhos. Então as ondas do rádio começam a destruir fachadas: O homem honrado e sisudo bate na mulher; a vizinha é uma fofoqueira; um convidado de uma festa rouba um diamante etc. Então o rádio trata de revelar o pior e o melhor do ser humano: demonstrações de amor, vaidade, fé e desepero.
E o ataque literário à sociedade americana continua em "Os males do gim", sobre o alcoolismo disfarçado de homens aparentemente sóbrios, "Só quero saber quem foi", sobre a safadeza de mulheres casadas, e "O general da brigada e a viúva do golfe", sobre a perversidade humana em tempos instáveis.
Cheever, como todos sabem, também escreveu romances, que inclusive lhe deram muito cartaz. Mas, assim como seu conterrâneo Raymond Carver, que se arriscou na poesia, ficou mesmo eternizado como um grande contista, sempre comparado ao russo Tchekov. O boxe sempre surge como metáfora para caracterizar a força devastadora que um bom conto pode causar no leitor. O soco literário tem a força de um nocaute. E Cheever, nesse sentido, batia forte.
Cheever, Carver, Fonseca, Bukowski e Trevisan, claro, são só alguns dos grandes contistas que apareceram nos últimos cinquenta anos (no Brasil, entre 1970 e 80 os contistas verteram aos montes). Em uma pesquisa mais minuciosa, pode-se constatar que há grandes nocauteadores por aí (lembro, agora, do cubano Pedro Juan Gutiérrez). Ainda assim, continuo com a impressão de que os contistas puros-sangues estão em extinção...
Ei, Rebinnski, provavelmente essa derrocada dos contos em termos de interesse do público/vendas é mesmo fruto do pensamento comercial das editoras, que não conseguem (ou se esforçam) para vender volumes de contos. Mas por um outro lado, os contos parecem ser menos (ou quase nada) estudados e comentados dentro das páginas de cultura e dos departamentos de Letras em geral. Na introdução desse volume do Cheever, acho muito bom aquele momento onde o Mario Sergio Conti comenta sobre o direcionamento atual dos departamentos de Letras, bastante preocupados com o "lado social" da literatura ao invés da prosa em si. Sem apoio comercial e amparo intelectual, via academia ou imprensa, é realmente complicado que os contos achem um novo lugar. Acredito que, no Brasil de hoje, temos vários bons contistas escrevendo romances - ou pelo menos tentando prolongar histórias de fôlego médio para 200 ou 300 páginas.
Bem, sou contista, com três livros de contos publicados, e fui naturalmente me interessando por novelas e romances, até por decorrência de uma necessidade de um mergulho mais extenso em meus personagens. Mas reconheço que o conto perdeu a sua "aura de prestígio" realmente, e lamento. O mercado editorial é insano. Nas Letras, gênero não importa, o que importa é talento, criação. Mas o comercialismo só consegue pensar de um jeito, infelizmente...e este jeito é anti-artístico, quase sempre.