Música e humor fazem parte da vida brasileira desde sempre e nos acompanham na alegria e na tristeza, no protesto e na tormenta, até que a morte nos separe ("Quando eu morrer, quero ir em fralda de camisa./ Defunto pobre de luxo não precisa...") ou até bem depois disso ("Eram duas caveiras que se amavam/ E, à meia-noite, se encontravam...")
A primeira música que mencionei chama-se "Nego Veio Quando Morre" e é quase centenária. A segunda, "Romance das Caveiras", nasceu em 1940. Ambas estão vivinhas na memória dos internautas e em regravações. Procure seus vídeos na rede.
Ao contrário de povos mais reverentes, o brasileiro transforma o bom humor infantil em arma e diversão para a fase adulta. É claro que, pelo tamanho do país, existem diferenças regionais quanto a temas e formas de expressão. O grau de refinamento vai da escatologia até a crítica sofisticada.
Como bons humoristas amadores, parodiamos quaisquer músicas que nos irritem: sucessos do momento, hinos de todo tipo, jingles políticos e publicitários, canções infantis, o "Parabéns a Você". Se a música insuportável não tem letra, inventamos uma. É o caso do toque de alvorada, que desperta os recrutas antes do nascer do sol, durante o serviço militar. Uma vez à solta, a paródia ganha fãs até entre os apreciadores da música satirizada. Quando cai na boca do povo, vai se aprimorando à medida que se espalha e só morre se a música original também morrer.
O termo "paródia" significa algo como "canto paralelo". Paralelo a quê? Ao "canto" original. Se não conhecemos a obra que deu origem à brincadeira, a paródia perde a graça. Por isso mesmo não vou sugerir que você procure os discos do Zé Fidélis a menos que se lembre dos sucessos musicais de 1940 a 1960.
Zé Fidélis foi radialista, cantor e pioneiro na gravação de discos humorísticos no Brasil. Seu estilo é ingênuo e um tanto quanto lento se compararmos a paródias atuais, como as da rádio Jovem Pan, mas as ideias inusitadas, que aparecem de repente, ainda fazem rir.
O melhor e mais divertido exemplo da relação entre paródia e tempo é a música "Parceria em Marcha Lenta", do MPB4. A "parceria" do título começa na Bossa Nova e passa por vários movimentos musicais, até terminar na época do naufrágio do Bateau Mouche, na Baía de Guanabara. Mas chega de paródia, vamos a outras músicas:
Forma antiga de humor, o desafio tem muitos e ótimos representantes no Brasil todo. Os nordestinos se destacam pelo raciocínio rápido e a criatividade. Cada cantador dispara versos de improviso, tentando ofender o oponente ou provar seu ponto de vista. A música em si varia pouco. As duplas costumam se acompanhar tocando pandeiros, no coco de embolada, ou violas, no repente. Na embolada, vale conhecer o trabalho dos irmãos Caju e Castanha. Como repentistas modernos, Os Nonatos são imbatíveis.
O humor está presente também no forró. "Derramaro o Gai" e "Severina Xiquexique", nas vozes de Luiz Gonzaga e Genival Lacerda, respectivamente, deixaram o Nordeste para se incorporar ao repertório de corais em outras regiões. Mas o sucesso nordestino, nas pistas de dança internacionais, chegou em 1994, com o hit brega "Black People Car", faixa do LP O Dinheiro Não É Tudo Mas É 100%, do humorista Falcão. A música foi parar nos clubes noturnos de Nova York.
Para ter um resumo do melhor em termos de samba satírico, ouça Os 3 Malandros in Concert, de 1995. É um registro ao vivo do encontro entre Bezerra da Silva, Moreira da Silva e Dicró. O título é uma brincadeira com o álbum Os 3 Tenores in Concert, de 1994, que reunia Plácido Domingo , José Carreras e Luciano Pavarotti. Só tem dois problemas: o som deixa a desejar e resumir esses "malandros" geniais é um crime. Vá atrás da discografia de cada um deles.
Paulista e indispensável, em termos de samba, é o álbum Demônios da Garoa Interpretam Adoniran Barbosa. Destacam-se pelo bom humor as faixas "Samba do Arnesto", "Samba Italiano" e "Um Samba no Bexiga".
O rock cômico atingiu seu ponto mais alto com a banda Mamonas Assassinas. Para desgosto de muitos pais, as músicas, que misturavam vários ritmos, caíram no gosto das crianças. As letras estavam longe de ser leves ou politicamente corretas, mas sua inteligência era inegável. Com a morte dos integrantes da banda em um acidente aéreo, a discografia ficou reduzida a um álbum de estúdio, Mamonas Assassinas, uma coletânea e um álbum ao vivo.
Finalizando, que tal unir humor, letras inteligentes e bons músicos? Vá a um show do grupo Língua de Trapo. Com um sotaque paulistano, a banda costuma primar pela qualidade do som ao vivo. Duvido que você saia sem comprar o CD.
Nota do Editor
Carla Ceres mantém o blogAlgo além dos Livros. http://carlaceres.blogspot.com/
A Carla nos fez ter uma belíssima viagem no tempo da boa música. Nos relembrando canções que marcaram por terem inteligência na composição das mesmas. Boas canções e interpretações eternizam as notas em nossa coração! Parabéns, Carla!